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quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

As cinzas da humildade redentora



As cinzas da humildade redentora

Nesta noite, ao serem impostas as cinzas da penitência sobre nossas cabeças, nos recordaremos, às palavras do ministro, que somos pó e ao pó retornaremos. A expressão é retirada do livro de Gn 3,9 e evoca o ambiente do castigo depois do pecado “Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e pó te hás de tornar.” (Gn 3,19). As palavras das consequências do pecado de nossos primeiros pais ainda ressoam doloridas nos nossos corações após cada pecado que cometemos como se fossem um tenebroso tema musical que acompanha a cena de nossa história pessoal. Entretanto, do mesmo castigo nasce a redenção.
 A expressão usada em Gn para dizer pó da terra é ’Adamah (hm'd'a). Sua sonoridade nos faz lembrar imediatamente a palavra Adam (~d'a') e nos remete àquela proximidade que temos com a terra de que fomos feitos: “Então Iahweh Deus modelou o homem com o pó do solo, insuflou em suas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2,7). Aparece no texto de Gn o ciclo de vida e morte que toca a todo ser humano: do pó nasce e ao pó retorna. Entretanto, algo no ser humano é diferente, ele recebe um sopro de vida que o faz vivente.
O ser humano é um mistério, um sinal de Deus que carrega em si dois extremos, a fragilidade do pó da terra e as alturas do sopro celeste. De certo modo, está relacionado à terra e deve cuidar dela, como deve cuidar de si mesmo e, por extensão dos seus semelhantes e por outro lado almeja o espiritual, o celeste, e deve busca-lo como concretização de seus maiores desejos e de si mesmo, como único modo de sua própria realização.
Se o tenebroso tema do pecado rasga a alma e tira da vida a suave canção da felicidade, Deus não quis nos deixar condenados às consequências lancinantes da morte, mas deseja, a cada dia – estejamos onde estivermos – trazer-nos de volta a experiência de amor consigo. Por isso enviou ao mundo o seu maior dom de Amor, Jesus.
É no Verbo que se fez carne e habitou entre nós (cf. Jo 1, 14) que encontramos o caminho de volta para Deus. Não o caminho de volta para o paraíso edênico, mas um caminho de volta para o Amor do Pai que se manifestou no seu Filho e nos toca por meio do Espírito, o caminho para a intimidade com Deus, para uma vida espiritual no Novo Adão (cf. 1Cor 15,45).
O caminho que Cristo nos deixou fica mais claro e evidente quando vivemos bem a Quaresma e a Semana Santa como verdadeiros peregrinos de volta para o Amor: “Sendo ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens. E, sendo exteriormente reconhecido como homem, humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso Deus o exaltou soberanamente e lhe outorgou o nome que está acima de todos os nomes, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho no céu, na terra e nos infernos. E toda língua confesse, para a glória de Deus Pai, que Jesus Cristo é Senhor.” (Fl 2, 6-11).
Portanto, o caminho de Cristo é o da humildade, reconhecendo nossa condição de pó. Mas não um reconhecimento revoltado, rebelde como o daqueles que não suportam a si mesmos. Essa rebeldia é obra do velho pecado que nos fez egoístas e soberbos. Ao contrário, o caminho encontra-se em reconhecer que em nossa humilde posição está a condição para nossa salvação. Se Cristo não se apegou ao seu ser, por que nós nos apegaríamos ao nosso não ser?
Deus ensinou à Doutora da Igreja, Santa Catarina de Sena, que a humildade é o solo fértil em que as raízes de nossas vidas se lançarão com profundidade no autoconhecimento que nos levará a contemplar a maravilha do que Deus é em nós. É exatamente por aí que São Paulo nos guia ao dizer que quando somos fracos é que se manifesta a fortaleza de Cristo em nós. (Cf. 2 Cor 12, 10): “o que é fraco no mundo, Deus o escolheu para confundir os fortes;” (1Cor 1,27)
“Mas qual é a estrada? [disse Deus à Santa Catarina] Vou dizê-lo. Toda perfeição e virtude procede da caridade; a caridade alimenta-se da humildade; a humildade nasce do auto- conhecimento e da vitória sobre o egoísmo da sensualidade. Para se atingir o amor filial é necessário, pois perseverar na cela do autoconhecimento. Nesta cela o homem conhecerá o Meu perdão através do Sangue de Cristo, atrairá sobre si pelo amor, a Minha caridade, procurará destruir em si toda má vontade espiritual e temporal...”.
Testemunho disso nos deu o Papa Bento XVI, ao resignar o trono de Pedro: “Converter-se significa não fechar-se na busca do próprio sucesso, do próprio prestígio, da sua própria posição, mas fazer, verdadeiramente, que cada dia, nas pequenas coisas, a verdade, a fé em Deus e o amor se tornem as coisas mais importantes”. Em outras palavras enclausurar-se no próprio egoísmo seria fruto do orgulho que levaria de novo o ser humano para longe de Deus, para o pecado.
Abrir mão dos próprios orgulhos e deixar-se nas mãos de Deus é um ponto árduo para o ser humano que está envolvido pelo pecado, mas é exatamente as cinzas que receberemos e que nos lembrarão que somos pó que nos farão encontrar a vontade de Deus e, nela, o Amor que nos dá alegria.
Assim, tornam-se gestos sinceros de quem deseja, pela humildade, chegar ao Amor: a esmola (o desapego do dinheiro, do poder), a oração (desapego de si mesmo, de suas próprias forças) e o jejum (desapego dos próprios desejos e instintos).
O ser humano do paraíso está contente por que ao mesmo tempo em que cuida da terra, cuidando de si, passeia de mãos dadas com Deus. O ser humano do pecado está entristecido pelo egoísmo que traz em sim, mas o ser humano da Igreja, que superou o pecado pela humildade, que encontrou nas suas cinzas o motivo de sua salvação, é Feliz por que não só esta de mãos dadas com Deus, mas participa do Amor da Trindade e leva esse mesmo amor a toda a Terra!
Do pó viemos e ao pó retornaremos, mas é do pó da humildade que nós ressuscitaremos! É esse o renascer do ser humano pelo caminho de Cristo, o da humildade que nos ensina saber quem somos e o que Cristo é em nós.

Pe. Fabiano de Carvalho Silva
Pároco
Nossa Senhora da Conceição – Boa Esperança


terça-feira, 9 de outubro de 2012

Escolha e escolhas num labirinto de opções


“Respondeu-lhe o Senhor: “Marta, Marta, andas muito inquieta e te preocupas com muitas coisas; no entanto, uma só coisa é necessária; Maria escolheu a melhor parte, que lhe não será tirada.”
(Lc 10,41)

Escolha e escolhas num labirinto de opções

Um site: milhões de opções a um clique; Uma TV: milhões de canais à sua escolha; uma vida: milhões de caminhos à sua frente. E depois? O que escolher?  No fio do novelo que puxamos se encontram milhares de opções de vida e, sem sombra de dúvidas, todos desejam a melhor parte e, empenham-se nisso. Mas nossas escolhas têm de fato nos levado à melhor parte? Na ânsia de ter nossos impulsos satisfeitos recebemos o prêmio de Midas e aquilo que, no início, parecia um bem inominável, logo se torna um peso insuportável.
Na mitologia grega, o Rei Midas havia recolhido Sileno que perambulava bêbado e depois de trata-lo com hospitalidade, Baco concedeu-lhe que escolhesse a recompensa que quisesse. Ávido e egoísta, Midas pediu a Baco o poder de transformar em ouro tudo o que suas mãos tocassem – o que lhe foi concedido. Satisfeito, Midas se maravilhava com o fato de que os galhos que tocava pelo caminho se tornassem ouro. Mas logo percebeu que sua escolha redundaria em desgraça. Pedindo que lhe preparassem um banquete, notou que não poderia comer nem beber o que transformara em ouro depois de ter sido tocado por aquilo que julgara ser um bem no início, mas que se transformara em uma maldição no final.
Dotados da capacidade de eleição, acabamos desperdiçando as possibilidades de escolha e, perdidos no meio do vórtice de opções, fazemos escolhas das quais nos arrependemos, mais cedo ou mais tarde. E se o fio que puxarmos da nossa vida nos conduz no caminho da avidez e do egoísmo, certamente o resultado final será sempre insuportável mesmo que tenha sido aprazível no início.
Para evitarmos o prêmio de Midas é necessário nos colocarmos diante das possibilidades e considerar o bem e o mal nas opções apresentadas. É um primeiro passo que raramente é dado por agirmos no impulso e não considerarmos os motivos.
Aliás, as palavras impulso e motivo vêm bem a calhar. Enquanto o impulso supõe uma força externa que, de repente, nos projeta para algo, uma necessidade imperiosa, muitas vezes irresistível, que pode levar à prática de atos descontrolados ou irrefletidos o motivo é interno, determina ou causa alguma coisa, é a finalidade com que se faz alguma coisa.
Um carro quando precisa de pessoas para dar impulso, está quebrado. Mas quando funciona como deve, o combustível produz a força que o move. Um carro bom funciona pelo motor, uma pessoa boa funciona por motivos e não impulsos. Só quando consideramos bem a escolha e o que nos move a ela, conseguimos atingir o bem que desejamos e evitar o mal que não queremos.
A escolha do mal é um corredor sem saída no labirinto das opções e isso, por si só, já é compreensível: o mal tira a liberdade, escraviza e o resultado é a infelicidade. O que no início parecia uma boa escolha, por causa de nossos impulsos (e o egoísmo é o primeiro deles) se torna enfadonho e insuportável.
Por isso um segundo passo é ter cuidado na escolha do bem, porque não basta escolher o bem, é necessário escolher entre os bens a melhor parte. Saber escolher o bem é a arte de viver feliz e no labirinto de opções, um fio deve conduzir as escolhas: O Bem que nos torna livres. Cada vez que escolhemos o Bem nos tornamos mais livres e quanto mais livres mais escolheremos o Bem, recolhendo a felicidade de cada ato.
Consiste, por tanto, a felicidade, na escolha do Bem maior. Não era um mal o cuidado das tarefas da casa e dos afazeres do tempo, mas Marta, diante do Cristo, escolhe um bem menor e por isso é censurada. Quando escolhemos o bem menor o resultado é sempre o mesmo: inquietação e preocupação. É necessário cuidado para não esbarrar nas paredes depois de ter evitado os becos do mal no labirinto de opções, pois a melhor parte nunca nos será tirada.
Entre as escolhas e a Escolha, a liberdade é o fio que nos guia para fora do labirinto do egoísmo do Ávido Midas porque diante do Eterno, o efêmero fica insignificante e a melhor parte é reconhecida pela razão e querida pela vontade nos levando à liberdade e em consequência, à Felicidade.

Pe. Fabiano de Carvalho Silva

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Uma palavra: VIDA!


Uma palavra: VIDA!

“O ministro Marco Aurélio de Mello, relator no Supremo Tribunal Federal (STF) da ação que pretende descriminalizar o aborto de fetos anencéfalos (sem cérebro), votou a favor da medida nesta quarta-feira (11) e afirmou que dogmas religiosos não podem guiar decisões estatais e que bebês com ausência parcial ou total de cérebro não têm vida.”
Vimos, ao revés de toda opinião pública do país, os ministros do STF declararem legítimo o aborto de anencéfalos. Um retrocesso no humanismo, segundo Reinaldo Azevedo. Mas isso não é tudo!
Não parece extremamente eivada de ideologismo o entendimento do STF? Sim, se levarmos em conta que a maior parte dos ministros do STF são oriundos das indicações do governo petista, que bem sabemos, militam sob o estandarte da morte e usam para isso o mote já velho, batido e discutido que em letras garrafais se apresenta: “o estado é laico”!
Um erro hediondo, já que o Estado, no entendimento do STF está produzindo um dogma: “Quando começa a vida”. Caberia ao estado o papel que quer desempenhar? Todas as vezes que o judiciário perde a noção de seu papel e decide “fazer as leis” perde também sua isonomia e seu objetivo.
O argumento dos religiosos não é religioso! É diminuir o argumento da dignidade humana reduzir o debate ao campo religioso quando na verdade trata-se de uma defesa expressa e clara da vida humana em qualquer de seus estados. No que toca o ser humano, o mais digno é que ele nasça, viva e morra naturalmente. O papel do Estado, em qualquer um de seus poderes, não é outro senão defender essa mesma vida. Isso reivindicamos e isso defendemos.
O entendimento do STF não corresponde à verdade e, exatamente por isso é um dogma contra o homem, já que nega a um feto (quer a um anencéfalo ou a qualquer outro) o direito a exercer o dom mais precioso e gratuito, isto é, a vida.
É uma falácia dizer que “Hoje é consensual no Brasil e no mundo que a morte se diagnostica pela morte cerebral. Quem não tem cérebro não tem vida”, como disse Marco Aurélio de Mello. Uma coisa é o cérebro que parou de funcionar deixando o corpo sem vida, outra é um corpo que, tendo uma vida, mesmo que vegetativa, tenha seu direito de existir negado. Não se pode colocar no mesmo patamar duas coisas, visto que uma coisa é a morte natural, outra é a interrupção de uma vida, mesmo que vegetativa. O erro lógico está na questão do princípio e do fim, não se pode julgar com os mesmos critérios o começo e o fim.
O argumento sobre o qual se apoiam alguns ministros para rechaçar o argumento ontológico dos religiosos se configura como discriminatório uma vez que não julga a matéria dos argumento, mas os que argumentam, como se a razão dos religiosos não fossem, pelo fato de partirem de religiosos, legítima.
Aqui o que está em questão é a dignidade da pessoa que, ao ser gerada, já tem seus direitos independente de suas condições físicas. Um ser humano é um ser humano a medida que é gerado assim. É simples de um gato não sai um ser humano, assim como de um ser humano não sai um não humano. Se é humano, tem direito à vida. Negá-la é retornar à barbárie.
Não se trata de um direito, o fato de decidir quem vive e quem morre!  Se há o mínimo de função vegetativa, já configura-se como vida humana, então por qual motivo negar esse direito. Veja que não se trata de um privilégio, mas de um DIREITO!
A pergunta a ser feita é fácil: aquele anencéfalo é um ser humano? Se dizer que não, o absurdo tomou conta da razão, mas se disser que sim, então por que negar a ele o direito a nascer?
Uns poderiam ainda argumentar o ponto de vista da mãe que não quer ou não tem “condições” de levar até o fim aquela gestação. Mas voltamos ao ponto inicial: é direito facultado a alguém negar um direito? A resposta é óbvia: NÃO!
Em fim, é de fato um retorno ao embotamento da razão chegar ao juízo que os ministros, viciados por ideologismos, chegaram. Paramos de novo diante do entrave da razão desligada da verdade que negou a milhares de judeus o direito à vida. A razão que deveria nos levar às luzes, nos colocou diante do mal no holocausto e, hoje, nos coloca diante do aborto.
O aborto é claramente a saída de volta para a negação da dignidade do ser humano: uma negação à VIDA!

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Verdades e Verdade



Alguns minutos na frente da TV, algumas folheadas nos jornais e entre uma música e outra no rádio, percebemos que estamos evoluindo em termos de marketing no mass mídia. Cada vez mais elaboradas, as propagandas convencem mais e mais consumidores, “convertendo-os” aos seus produtos, convencendo-os de suas verdades e encarcerando-os a idéias como: “obedeça a sua sede”, “você não pode viver sem ele” ou “fazemos tudo por você” entre outros chavões que se cristalizam em nossas mentes.
Contudo, a evolução do marketing significa, quase sempre, a involução do homem e seu senso de verdade. Muito embora haja aspectos muito positivos, existem também os negativos. Não queremos condenar o marketing, mas desejamos colocar um contraponto e traçar um panorama que evite a deturpação da verdade e favoreça uma cultura evangélica autêntica onde os reais valores de vida possam ser experimentados em sua profundidade. Uma cultura como a nossa precisa receber um grande choque para restabelecer no homem uma humanidade que caminhe para seu Destino.
Estas propagandas, que ocultam sob corpos bonitos e imagens bem produzidas nocivas idéias de “verdade”, vêm perpassando nossa geração e convencendo conscientes e inconscientes de uma perigosa realidade que vem degradando nossa humanidade. Se há tempos atrás a verdade era pautada na adequação do intelecto à coisa, e se dizer a verdade significava fazer encontrarem-se o ser e o pensamento numa perfeita harmonia no plano da realidade objetiva, hoje temos uma sutil mudança.
O que ocorre é que a verdade da coisa foi deslocada da realidade objetiva para o plano subjetivo. A verdade vem sendo arrastada do campo da objetividade para o obscuro subjetivismo e lá acorrentada, uma vez que as perspectivas sobre a vida vêm mudando de acordo com os novos focos de interesse, que voltam seus olhos invertidos para o ter em detrimento do ser, e conseqüentemente atraem a cobiça pelo lucro. Desta ótica a verdade passa a ser enclaustrada no que convém a cada um segundo a sua necessidade momentânea e particular. A verdade figura então como adequação do pensamento e da coisa ao interesse individual naquele restrito momento.
Essas idéias não nos chegam sem gerar uma conseqüência preocupante: a tendência individualista que rompe com a índole comunitária presente no próprio homem desde os primórdios, onde se associava e estabelecia o sentimento de solidariedade que deveria evoluir para um sentido de presença e acolhida do outro, mas que foi deturpado para uma tolerância do outro e que logo redundaria, com o auxilio da economia de mercado, no sentido de competição e superação do outro rompendo os laços de fraternidade na espécie humana, fazendo da vida uma competição insana e autodestrutiva, uma vez que destruir o outro significa destruir-se a si próprio.
O marketing segue o princípio da venda do produto, isto é, o modo de apresentação do produto deve convencer de que este é, não só o melhor, mas o necessário. Expressões como “agregar valores”, “valor de mercado”, “tática de convencimento” e “público alvo” já nos dão pistas de para onde caminha e o que está por traz de cada “inocente” reclame publicitário diariamente veiculado nas programações de entretenimento eivadas de sentido comercial.
Instalou-se uma cultura de compra e venda que faz a vida ser reduzida a um grande mercado que deseja o lucro. Assim, ficam enfraquecidos conceitos e experiências de gratuidade, de amizade e de solidariedade. O “uso” das coisas começa a migrar para o uso do outro. A visão do outro como alguém que nos proporciona algum tipo de “lucro” subverte a pureza das intenções e relações.
Como conseqüência, o ser humano desfragmenta-se, porque perde o senso de comunidade e comunhão, por tanto, limita seu existir, perde sua perspectiva de futuro ensimesmando-se ao hoje fugaz que lhe escapa por entre os dedos e não traz a satisfação desejada. Seu desejo de eternidade é frustrado e sua busca acaba redundando numa solidão em meio à multidão.
Diante desse panorama, surge uma capital pergunta inquietante: Como anunciar alguém que ensina a doar, a perder, a ser o ultimo, a viver segundo o espírito e que priorizam um depois?
Essa inquietante realidade tem sido causa de preocupações teológicas e pastorais. Muitas respostas vêm sendo propostas: uma libertação social do homem que reivindica seus direitos sociais para uma vida menos indigna; um virar-se única e exclusivamente para as realidades pseudo-sobrenaturais que pretendem o céu já aqui ou uma simbiose de religiões que dão, a principio, uma sensação de tranqüilidade espiritual, mas que, tão logo tal tranqüilidade desapareça, muda-se de religião em busca de “encontrar-se”.
Parece que estas respostas propostas ao longo do tempo são insatisfatórias, quer por não preencherem a ânsia de eternidade presente no homem, quer por serem mutiladas e descentralizadas. Todas elas se tocam num ponto: pretendem que já neste tempo haja uma societas perfectas, contudo o Reino de Deus não é deste mundo. Deste modo, apresentar planos que vigorem somente no plano cronológico não constitui resposta valida, uma vez que o próprio núcleo essencial do cristianismo prega uma comunhão que alcança o agora, mas que está para o além.

“Num sentido, nós vamos viajando, sempre viajando como sem saber aonde vamos. Noutro sentido já chegamos. Não podemos nesta vida chegar à perfeita posse de Deus: É por isso que estamos viajando e nas trevas. Já possuímos, porém, Deus pela graça. Nesse sentido então foi que chegamos e ora residimos na Luz...”
(Thomas Merton)

Perceber que o homem está “em via” é o primeiro passo para superar o problema, isso significa que ele está e não está completo; a sua luta cotidiana ocorre num espaço e num tempo: sua vida. Mas enquanto caminha, sabe que já possui em si qualquer coisa de mistério, qualquer coisa que o faz sentir desde já a realidade de uma promessa, e por isso se sabe completo, sente a perfeição em si, pois reconhece que existe nele uma dignidade ímpar.
Por outro lado, podemos perceber que estamos todos nos construindo e que o instrumento principal para a construção do homem é sua liberdade de agir desta ou daquela forma. O homem em via descobre que enquanto está nesta condição não há nada, absolutamente nada que o complete ou que o satisfaça. É incompleto enquanto é perfectível. Há com isso uma abertura para o transcendente e uma possibilidade de sair da crise da desfragmentação pela possibilidade da re-construção e superação de si mesmo.
Recolocar o homem como peregrino restaura o senso de Esperança, por que se caminha, caminha rumo a um destino. Assim podemos conceber a realidade da salvação, isto é, a participação na vida do próprio Deus. O homem, que por si só jamais poderia participar da eternidade Divina recebe, com a promessa e concretização da Aliança em Cristo, a Esperança de receber o inaudito. Assim eram os primeiros cristãos: tinham diante dos olhos a perda e o que esperavam era o INVISÍVEL. Disso nós devemos alimentar nossa fé: da esperança de receber aquilo que não se vê. Nisso vivemos o mistério!
Porém, para chegar a esse mistério, é necessário um caminho de vida: A VERDADE. Não uma verdade que muda ao sabor da moda ou algo que convenha a determinado momento, mas uma verdade essencial. Esse é um caminho de mística: crer que o invisível irá nos conduzir ao Eterno, crer que em meio às coisas que passam podemos tocar o que não passa.
O homem é criado para o alto e por isso nos revolvemos em busca do Eterno na verticalidade da verdade que se encontra e se toca no vértice da vida com a horizontalidade da humanidade. Essa verdade nos toca de forma arrebatadora quando nos permitimos ser atraídos por ela e ela mesma muda nossas vidas, não mais de acordo com uma mentalidade mercado, mas segundo a profundidade da essência do mistério da Vida.
Em fim, para superar a verdade de mercado, proporcionada pela mentalidade de marketing do mass mídia, que traz em si muitos danos morais ao homem, é necessário descobrir que neste peregrinar que chamamos de vida, estamos em busca de nosso fim último, o desejo de eternidade, e que para chegar a bom termo é necessário viver em busca daquilo que não se vê. Descobrir que nos agarramos ao que há de Bom e que tudo governa, como uma mão invisível que conduz a história rumo a um triunfo final onde a Verdade será Vivida plenamente na Eternidade. Nós, cristãos, caminhamos neste mundo como se víssemos o invisível. 

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A Continuidade do Pensamento da Igreja entre a Pascendi Dominici Gregis e a Veritatis Splendor

INTRODUÇÃO

Duas encíclicas que distam uma da outra oitenta e seis anos, com estilo literário e contexto histórico diverso e com motivos diferentes. Uma, A Pascendi Dominici Gregis, de oito de setembro de 1907, quinto ano do Pontificado de São Pio X e a outra, Veritatis Splendor, de seis de agosto de 1993, décimo quinto ano do Pontificado de Papa João Paulo II são aparentemente tão diferentes entre si. Contudo, trazem um pano de fundo bastante comum e revelam a continuidade do Magistério Petrino, exercido pelo Romano Pontífice, infalível em questões de moral e fé e perene, atravessando o tempo e acertando o passo com a eternidade.
Perceber nestes documentos que os tempos mudam, mas a problemática moral e religiosa do modernismo, embora com roupagens diversas e apresentação não menos mutáveis, são as mesmas é uma tarefa não muito difícil. Responder, no hoje da história aos problemas dos modernistas, que fundam suas teorias num agnosticismo imanentista que alcançam de um modo ou de outro – quer pelo panteísmo quer pelo subjetivismo – uma proposta ateísta que rechaça a Igreja e a religião é um ponto delicado que ambas encíclicas buscam elucidar partindo da verdade absorvida pela consciência do homem.
Mostraremos neste trabalho a continuidade do pensamento da Igreja nas duas encíclicas; como por trás do agnosticismo e imanetismo denunciados pela Pascendi está uma aspiração por uma liberdade desvinculada de uma natureza humana e como por trás das teses condenadas pela Veritatis Splendor estão o agnosticismo e o imanetismo descrito pela Pascendi.
  
I - A CONTINUIDADE DO PENSAMENTO DA IGREJA NAS DUAS ENCÍCLICAS.

O magistério da Igreja Católica é o corpo de mestres autorizados a ensinar e avaliar os pontos de doutrina, uma instancia habilitada a pronunciar-se em matéria de fé e de moral a ela confiada pelo próprio Cristo. Assim, a Igreja tem o dever de expor a doutrina revelada, já que é sua guardiã e dispensadora. O Magistério não acrescenta novidades, antes elucida e reafirma a doutrina católica e tem como o infalível doutor o Papa.
Se expressa a unidade desse magistério, que é perene, mesmo que os tempos sejam outros e mesmo que as necessidades sejam outras. O magistério é fiel à doutrina revelada pelo Cristo e a si mesmo não se contradizendo. Assim ocorre com as encíclicas Pascendi Dominici Gregis e Veritatis Splendor, o problema comum das duas encíclicas é a doutrina modernista, que trazem em seu epicentro questões imanentitas e agnósticas. Mas de que se trata?

1.1.  Imanentismo
O imanentismo nega qualquer realidade ou ser fora da consciência ou da autoconsciência. Na leitura modernista, tal era o fundamento do método da imanência: encontrar Deus e o sobrenatural na consciência do homem. Assim, a fé não surge se não dos sentimentos e necessidades religiosas do homem.

1.2.  Agnosticismo
No sentido literal designa a tese sobre a qual Deus é incognoscível, o que se traduz, pois, pela suspensão de todo juízo sobre a sua existência, aparentando-se, por isso, com o ceticismo. Não é uma negação dogmática da existência de Deus, mas a simples recusa de pronunciar-se sobre ele. Situar Deus acima da ordem do cognoscível pode ser uma maneira de reconhecer sua eminência, mas ao dizer que Deus é inexistente para o pensamento, também pode ser recusar-lhe toda e qualquer existência.

1.3.  O modernismo
O Modernismo foi uma tentativa de reforma católica que teve alguma difusão na Itália e na França no ultimo decênio do século XIX e no primeiro de nosso século e foi condenada na encíclica Pascendi por Pio X. Recebe a inspiração das exigências da Filosofia da Ação[1] e consiste em extrair desta filosofia o significado que deve ser dado aos conceitos fundamentais da religião. Na Itália, assumiu especialmente a forma da crítica bíblica e política.
Podemos resumir da seguinte forma:
a). Deus se revela imediatamente à consciência do homem. Este princípio diminui ou anula a distancia entre o domínio da natureza e o da graça e também entre o homem e Deus, fazendo de Deus o princípio metafísico da consciência humana.
b). Deus é antes de tudo um princípio de ação e a experiência religiosa é prática, fazendo coincidir a religião com a moral.
c). Os dogmas nada mais são que expressões simbólicas e imperfeitas, porque relativa às condições históricas do tempo em que se constituem, da verdadeira revelação que é a que Deus faz de si próprio à consciência do homem.
d). À bíblia devem ser aplicados sem limitação os instrumentos de investigação de que dispõe a pesquisa filológica, isto significa dizer que deve ser estuda como um documento histórico da humanidade.
e).  O Cristianismo, no campo da política, deve conduzir à defesa do progresso e ascensão do povo, cuja vida na história é a manifestação própria da vida divina.

Faz-se mister entender que Pio X na Pascendi tem a intenção de “primeiro [exibir]... as mesmas doutrinas em um só quadro, e mostrar-lhes o nexo com que formam entre si um só corpo, para depois [indagar] as causas dos erros e [prescrever] os remédios para debelar-lhes os efeitos perniciosos” [2]. Faz uma esmerada análise do movimento modernista, eivado de sentido agnóstico e imanentista, condenando-o.
A Veritatis Splendor, embora não tenha diretamente como objetivo responder ao problema do modernismo, uma vez que já está distante de seu epicentro, resgata o problema debelando os erros. Isso fica expresso em parágrafos como:

“Na sua raiz, está a influência, mais ou menos velada de correntes de pensamento que acabam por desarraigar a liberdade humana da sua relação essencial e constitutiva com a verdade.  Rejeita-se, assim, a doutrina tradicional sobre a lei natural, sobre a universalidade e a permanente validade dos seus preceitos; consideram-se simplesmente inaceitáveis alguns ensinamentos morais da Igreja; pensa-se que o próprio Magistério possa intervir em matéria moral, somente para “exortar as consciências” e “propor os valores”, nos quais depois cada um inspirará, de forma autônoma, as decisões e as escolhas da vida.”[3]

Os documentos encaram a mesma realidade de subjetivismo que o imanentismo e o agnosticismo, presentes no modernismo, pulverizam na doutrina cristã. O Papa Pio X realça no pensamento modernista o seguinte sobre a verdade e a mutabilidade dos cânones religiosos:
Não é, portanto de nenhum modo lícito afirmar que elas [as fórmulas religiosas] exprimem uma verdade absoluta; portanto, como símbolos, são meras imagens de verdade, e, portanto devem adaptar-se ao sentimento religioso, enquanto este se refere ao homem; como instrumentos, são veículos de verdade e assim, por sua vez, devem adaptar-se ao homem, enquanto se refere ao sentimento religioso[4].

Podemos ler na Veritatis Splendor:
“Generalizada se encontra também a opinião que põe em dúvida o nexo intrínseco e indivisível que une entre si a fé e a moral, como se a pertença à Igreja e a sua unidade interna se devessem decidir unicamente em relação à fé, ao passo que se poderia tolerar no âmbito moral um pluralismo de opiniões e de comportamentos, deixados ao juízo da consciência subjetiva individual ou à diversidade dos contextos sociais e culturais.”[5]

Os problemas denunciados pela Pascendi estão no fundo das questões criticadas pelo Papa João Paulo II. Temas como o subjetivismo, a negação da lei natural, a incognoscibilidade de Deus, a redução da religião ao sentimento religioso, redução dos dogmas da Igreja e das normas morais à meras fórmulas religiosas inadequadas, a modificação e “evolução” da doutrina de acordo com o contexto histórico em que se encontram e etc.,  apresentados na Pascendi são retomados na Veritatis Splendor.

II - AS ASPIRAÇÕES POR UMA LIBERDADE DESVINCULADA DE UMA NATUREZA HUMANA NO IMANENTÍSMO E AGNOSTICISMO DENUNCIADOS PELA PASCENDI.

Já em 1907 verificava-se que entre as causas do modernismo, poderiam ser encontrados, entre as causas remotas do modernismo o amor de novidades e o orgulho expressos por uma vontade de liberdade que, opondo a liberdade do homem à lei natural acabam por deturpara a liberdade.
O modernismo coloca em rota de colisão a liberdade e a lei, contudo, não são idéias que colidem, mas se completam. Se por um lado os modernistas, sob o pretexto de libertar a consciência humana, acabam por restringi-la a mera consideração dos fenômenos, sem transpor os limites a que é chamada a transpor, por outro lado inculca uma falsa idéia de liberdade dizendo que a religião deve mudar de foco de acordo com o tempo.
No modernismo, o homem produz Deus no seu interior, por uma necessidade de divindade por ele sentida que é produzida no âmbito do incognoscível. Diante deste incognoscível, dentro ou fora do homem, a necessidade de um quê divino que une o homem a Deus.
Ora, deste ponto de vista, a vontade de uma liberdade desconexa de qualquer parâmetro externo acaba por desembocar num fideísmo onde o homem gera os próprios parâmetros da consciência e segue-as como norma. O modelo moral move-se do reconhecer a verdade intrínseca às coisas para a verdade produzida pela consciência do homem.
A perspectiva do modernismo denunciado pela Pascendi Dominici Gregis leva necessariamente ao subjetivismo religioso, denotando assim o intuito de impostar uma liberdade desvinculada da natureza humana:

“Efetivamente, o orgulho fá-los confiar tanto em si que se julgam e dão a si mesmos como regra dos outros. Por orgulho loucamente se gloriam de ser os únicos que possuem o saber, e dizem desvanecidos e inchados: Nós cá não somos como os outros homens. E, de fato, para o não serem, abraçam e devaneiam toda a sorte de novidades, até das mais absurdas. Por orgulho repelem toda a sujeição, e afirmam que a autoridade deve aliar-se com a liberdade.”[6]

O AGNOSTICISMO E O IMANETISMO DESCRITO PELA PASCENDI NAS TESES CONDENADAS PELA VERITATIS SPLENDOR.

A Carta de Pio X denuncia o modernismo pela explicação minuciosa de seus enunciados e proposições. Tais podem ser encontrados em refutações e condenações na Veritatis Splendor.
 Carta de João Paulo II defende a luz de Deus, objetiva e autentica no interior do homem e “nenhuma sombra de erro e de pecado pode eliminar totalmente”, pois “nas profundezas de seu coração permanece sempre a nostalgia da verdade absoluta e a sede de chegar à plenitude do seu conhecimento” contrariando as teses modernistas que foram expostas na Pascendi.
A relação intrínseca entre a verdade e liberdade humana é a firmada e com ela a doutrina clássica sobre a lei natural, sobre a universalidade e permanente validade dos preceitos expostos pelo magistério para exortar às consciências e propor valores.
Posto que a perfeição exija a maturidade do dom de si, a que é chamada liberdade do homem, a carta põe em relevo:

“A palavra de Jesus revela a dinâmica particular do crescimento da liberdade em direção à sua maturidade e, ao mesmo tempo, comprova a relação fundamental da liberdade com a lei divina. A liberdade do homem e a lei de Deus não se opõem, pelo contrário, reclamam-se mutuamente. O discípulo de Cristo sabe que a sua é uma vocação para a liberdade. “Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade” (Gl 5, 13), proclama com alegria e orgulho o apóstolo Paulo. Mas logo precisa: “Não tomeis, porém, a liberdade como pretexto para servir a carne. Pelo contrário, fazei-vos servos uns dos outros pela caridade”.[7]   

Vemos assim, que no fundo da carta de João Paulo II figura a problemática do modernismo, condenada com muitos argumentos que alcançam um cunho cientifico sem, contudo, desprezar a fé e sem deixar de considerar a transcendência acessível ao homem, a ela destinado, cujo acesso único é o Cristo.

CONCLUSÃO

Vemos assim que o modernismo esta o pano de fundo da Veritatis Splendor, assim como a questão da liberdade humana em relação a lei natural esta na perspectiva da Pascendi ao denunciar o modernismo. Denota-se assim o quanto as questões postas levam aos mesmos sistemas que reduzem o homem, a fé e a religião sob um pretexto de liberdade.
É pertinente a colocação de Jean Guiton e, com ela encerramos nossa reflexão que mostrou, nas duas cartas, a continuidade do magistério e as idéias subjacentes que se ligam umas as outras. Diz ele:
“O modernismo nos aparece como um caso particular num sistema mais amplo, como uma forma de pensamento que retornará sempre, ao longo da história do catolicismo, quando o espírito quiser fundar a fé sobre o espírito do tempo em vez de integrar o espírito do tempo à sua fé”. [8]




BIBLIOGRAFIA

I. FONTES
PIO PP X. Carta Encíclica Pacendi Dominicis Gregis. São Paulo, Paulus. 2002.
JOÃO PAULO PP. II, Carta Encíclica Veritatis Splendor. São Paulo, Paulinas. 1993.

II. OBRAS
COMPAGNONI, Francesco (dir). Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Paulus,1997.
LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário Crítico de Teologia, São Paulo, Paulinas e Loyola, 2004.


[1] Caracterizada pela crença de que a Ação constitua o caminho mais direto para conhecer o Absoluto ou o modo mais seguro de possuí-lo. O primado da Razão Prática de que Kant falará não tinha significado fora do domínio moral; Mas com Fichte esse primado significa que só na ação o homem se identifica com o Eu infinito. Na forma religiosa a ação é o núcleo essencial do homem e só a análise da ação pode mostrar as necessidades e as deficiências do homem, além de sua aspiração ao infinito: que por sua vez pode vir satisfeita somente pela ação gratuita e misericordiosa de Deus.
[2] PIO PP X. Carta Encíclica Pacendi Dominicis Gregis. São Paulo, Paulus. 2002, n. 7.
[3] JOÃO PAULO PP. II, Carta Encíclica Veritatis Splendor. São Paulo, Paulinas. 1993, n. 4.
[4] PIO PP X. Carta Encíclica Pacendi Dominicis Gregis. São Paulo, Paulus. 2002, n. 33.
[5] JOÃO PAULO PP. II, Carta Encíclica Veritatis Splendor. São Paulo, Paulinas. 1993, n. 4.
[6]PIO PP X. Carta Encíclica Pacendi Dominicis Gregis. São Paulo, Paulus. 2002.
[7]JOÃO PAULO PP. II, Carta Encíclica Veritatis Splendor. São Paulo, Paulinas. 1993, n. 17.
[8] GUITON, Jean. La penseé de M. Loisy, p. 20 in LACOSTE, Jean-Yves Dicionário Critico de Teologia. São Paulo, Paulinas: Loyola, 2004 in verbete modernismo.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A LITURGIA CRISTÃ AJOELHA-SE DIANTE DO SENHOR CRUCIFICADO E ELEVADO!


Deparo-me agora com um artigo[1] publicado pelo Niterói Católico, órgão oficial de informação da Arquidiocese de Niterói/RJ, que parece não corresponder exatamente àquilo que é a orientação da Igreja.
Sob o título “Ajoelhar-se ou ficar de pé? Eis a questão”, encontra-se uma enxurrada de informações que carece de algum aprofundamento e, não menos de fundamentação. Para nos colocar à par do conteúdo do texto, passamos a um rápido resumo:
O centro do debate é a posição da assembleia durante a Anáfora: se deve permanecer de pé ou ajoelhada, como é costume em nossas celebrações. Necessitamos de clareza inicial sobre o status quo do debate que o autor deseja trazer à peito. Analisemos:
“O ajoelhar-se durante a prece Eucarística, é um dos temas que tem gerado muitas discussões. Pode-se dizer que isso é reflexo de mais de mil anos de uma fé devocionista que nos distanciou da prática ritual-celebrativa da Igreja primitiva. E Hoje após quase cinquenta anos do Concílio Ecumênico Vaticano II, que propôs a volta às fontes, colhemos os resquícios desse período”.

Podemos perguntar o que é reflexo de mais de mil anos de uma fé devocionista: as muitas discussões ou o ajoelhar-se durante a prece eucarística? Se o problema é o desenvolvimento do debate litúrgico, devemos tomar um viés para análise do tema, mas se é o gesto de ajoelhar-se, em si, cabe outro tipo de reflexão. Vamos tentar responder a ambos os pontos.
Um renomado teólogo, ao nos introduzir no espírito da liturgia, dedica sete páginas de sua obra somente sobre esse assunto. É claro que facilmente poder-se-ia refutar o argumento com base no fato de o autor não ser latino-americano e, por isso, não entender a “inculturação” da liturgia no Brasil. Contudo, não obstante à nacionalidade germânica, não devemos deixar de estar atentos à palavra de Joseph Ratzinger[2] em seu livro “Introdução ao espírito da liturgia” [3].
Analisando a “história do gesto de ajoelhar”, passa em revista a recusa dos Romanos e Gregos, sob o argumento de que “ajoelhar-se não seria digno do homem livre nem condiria com a cultura grega, sendo assunto de bárbaros” [4] e dá voz à negativa de Agostinho de ajoelhar-se diante de falsos deuses.
Explica o autor: “Olhando a história podemos constatar que tanto os Gregos como os Romanos rejeitavam a posição de joelhos. Perante os deuses parciais e desunidos... tal comportamento tinha plena justificação: para estes povos, era por demais evidente que esses deuses não eram Deus, mesmo dependendo do seu poder caprichoso e tendo sido obrigados a assegurar-se, quando possível de sua benevolência (...) Agostinho dá-lhe [à Aristóteles], de certo modo, razão: as divindades falsas seriam apenas máscaras de demônios, que sujeitam o Homem à adoração do dinheiro e ao egocentrismo, tornando-o deste modo, servil e supersticioso” [5].
Remarca ainda que o gesto de ajoelhar-se se origina na própria Sagrada Escritura, já que a palavra proskynein[6] aparece 59 só no Novo Testamento. Ajoelhar-se, segundo Ratzinger, tem para o Antigo Testamento, o sentido de rebaixar as forças diante de Deus como forma de reconhecimento de seu poder que origina tudo o que temos[7], uma forma clara de adoração.
Nos Atos dos Apóstolos, falam-se da oração de São Pedro (9,40), de São Paulo (20,36) e de toda a comunidade Cristã (21,5) em posição de joelhos.
Fica provado assim que o argumento de que os primeiros cristãos partiam o pão, nas casas (domus ecclesia), celebravam nas catacumbas, se reuniam ao redor da mesa e que, por não haver bancos ou genuflexórios nestes lugares, todos ficavam de pé, ao redor do centro, do altar, resulta em inválido, por não corresponder aos referentes bíblicos.
Se o argumento fosse válido, a fortiori ratione, deveríamos ter que retirar o altar, os bancos, o sacrário, os retábulos, o ambão e outras coisas... E para reduzir ao absurdo, creio que se devemos propor uma volta naqueles termos, por que não usarmos o mesmo estilo de roupas que os primeiros cristãos?
Se a palavra do teólogo Joseph Ratzinger não nos servir de posição abalizada, ao menos nos sirvam as palavras da Exortação Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis[8] de Sua Santidade Bento XVI. O documento agora mencionado trata, no número 65 da reverência à Eucaristia e assim se expressa:

Penso, em geral, na importância dos gestos e posições, como, por exemplo, ajoelhar-se durante os momentos salientes da Oração Eucarística. Embora adaptando-se à legítima variedade de sinais que tem lugar no contexto das diferentes culturas, cada um viva e exprima a consciência de encontrar-se, em cada celebração, diante da majestade infinita de Deus, que chega até nós humildemente nos sinais sacramentais.”[9]

Quais mais palavras deveriam ser ditas para indicar a importância do ajoelhar na Consagração durante a Oração Eucarística. Se houve algum questionamento no pensamento do autor do artigo quanto a melhor atitude de exprimir o que celebramos, os documentos recentes da Igreja o dirimem logo nas primeiras olhadelas.
Outra tensão que não ficou bem clara naquele artigo foi a que existe entre “o Banquete” e “o Sacrifício”. Não raro, esse tema causa alguma dificuldade. Devemos lembrar que a palavra “Católica” significa universal e açambarca o sentido de totalidade de modo que não se pode partir de uma escolha entre uma das partes, mas do todo[10].
Se de um lado é verdade que o banquete da alegria é um aspecto da missa, também é verdade que o sacrifício também o é. Isso nos faz compreender o Apocalipse de São João que nos mostra a liturgia celeste onde, no altar do sacrifício está o Cordeiro imolado e de pé[11]! Entre lágrimas copiosas por não haver quem abrisse o livro da história, João é chamado a alegrar-se porque vencera o Leão de Judá que poderá abrir o livro.
Essa mística penitencial e festiva é expressa no próprio andamento das partes da missa que, no ato penitencial nos convida a reclusão e no Glória nos convida à alegria. Respeitar esses momentos é imprescindível para uma celebração frutuosa da liturgia [12].
Parte desta tensão é também a realidade mística da missa que transcende o tempo. No entanto isso não significaria dizer exatamente que estamos no céu. É óbvio que não estamos no céu, por que se assim fosse não o deixaríamos mais. Vale a pena lembrar a expressão advinda da escatologia que remarca aquela tensão de que faláramos: “já, mas ainda não”.
Diante de tudo isso, vale a pena perguntar: Qual o sentido do ajoelhar-se na celebração Eucarística[13]?
É duplo o significado. Em primeiro lugar o de súplica, pequenez. O homem reconhece sua condição criatural e a condição Divina de Deus. Ajoelha-se diante de Deus como um pequenino que d’Ele tudo deseja e espera receber. Ao mesmo tempo, de adoração por que aquele Deus de quem ele recebe tudo, é também o Deus sumamente bom que “trabalha” muito mais pela salvação do homem que o próprio homem.

Existem algumas coisas que merecem relevo:

1)    Dentre os cânones do Concílio de Nicéia[14] (325), é bem verdade, há a recomendação de que, nos dias do Senhor em Pentecostes, todos devem rezar de pé e não ajoelhados. Mas daí a dizer que há uma proibição, não se sustenta. As pessoas não ajoelhavam no domingo por uma questão penitencial (no domingo não se fazia penitência), mas, no segundo milênio a Igreja trouxe de volta o aspecto de adoração e reverência diante da majestade divina que, como vimos, já era usual no ambiente neo-testamentário.
2)    Nós não podemos escolher a postura que devemos tomar na liturgia sob pena de um relativismo litúrgico. As prescrições litúrgicas da Instrução Geral ao Missal Romano dizem:

“A posição comum do corpo, que todos os participantes devem observar é sinal da comunidade e da unidade da assembleia, pois exprime e estimula os sentimentos e pensamentos dos participantes” [15]

3)    As dimensões da teologia do múnus sacerdotal, que entre o padre e os demais fiéis é complementar, mas distinto, fica evidenciado uma vez que, na Oração Eucarística, o padre está exercendo seu múnus sacerdotal ministerial enquanto os demais fiéis o fazem mediatizados pelo padre.
4)    A mesma Instrução Geral diz: “Ajoelhem-se durante a Consagração, a não ser que a falta de espaço, ou o grande número de presentes ou outras causas razoáveis não o permitam”[16], não deixando margem nenhuma para uma escolha por parte do fiel (usa o verbo “ajoelhar” no imperativo) e coloca como exceção bem definida o fato de não se ajoelhar.
5)    O fato de não haver uma codificação da genuflexão nas normativas antigas não significa, nós bem o sabemos, que não era prática entre os cristãos. A guisa de exemplo, podemos ver muitas situações em que o uso precedeu à normativa (a Assunção de Maria é um bom exemplo).

Uma ultima palavra:

Nossa intenção, ao responder aquele artigo publicado no Órgão oficial da Arquidiocese de Niterói é simples e reside em dois motivos:
A palavra grega σκοπεύω[17], de onde vem a palavra “Epíscopo”, significa “ver”. Daí ser um dos ofícios do padre, como colaborador do Bispo, ajuda-lo a ver aquilo que pode levar à comunidade ao erro.
Depois, uma grande parte de nossos leigos tem acesso ao Niterói Católico e, por ser um órgão oficial, deve ser sempre teologicamente revisado e não pode conter, de modo algum, quaisquer imprecisões que causem confusão às pessoas que são sinceras, mas desavisadamente leem os artigos lá constantes.
Ainda é necessário ressaltar que devemos sempre zelar pela reta doutrina e disciplina e que reflexões que sejam dissonantes do que nos ensinam os livros litúrgicos e os documentos magisteriais devem ser evitados, como nós mesmos afirmamos quando fazemos nossa profissão de fé, que por ocasião da Sagrada Ordenação, que no ato da posse canônica.

Visamos esclarecer as imprecisões relativas ao gesto reverente de genufletir bem como o debate sobre seu uso. Percorremos a sadia teologia de Ratzinger e o magistério da Igreja, principalmente as expressões da Instrução Geral ao Missal Romano, e a tradição para chegarmos a conclusão de que é legitimo e obrigatório ajoelhar-se durante a Anáfora não só por respeito às rubricas contidas nos livros litúrgicos, mas, sobretudo, por reverente reconhecimento de nossa pequenez e adoração diante de Deus.



[1] Fróes, Pe. Marcelo. “Ajoelhar-se ou ficar de Pé? Eis, a questão!” in Niterói Católico, outubro de 2011. Ano 48, n. 548, p. 9.
[2] A respeito do autor, podemos dizer que embora a obra que se citará não seja um documento pontifício e não tenha força da autoridade magisterial, podemos afirmar com certeza que, por sua própria personalidade, Joseph Ratzinger constitui uma voz extremamente abalizada por ter sido perito do Concílio Vaticano II, de modo que seu pensamento, de certo modo, é uma voz que ressoa das fontes do Concílio e, ainda mais, sua teologia se mostra autêntica e segura, isto é, confiável.
[3] RATZINGER, Joseph, Introdução ao Espírito da Liturgia. São Paulo: Paulinas, IV Ed. 2011, pp. 136 – 143.
[4] Ibid. p 137.
[5] Ibidem.
[6]  Em grego προσκυνειν
[7] Cf. Opus Cit. p. 141.
[9] Grifo nosso.
[10] A propósito, a origem da palavra heresia (do latim haerĕsis, por sua vez do grego αἵρεσις, “escolha” ou “opção”, remonta a ideia de assumir somente uma parte e não o todo.
[11] Cf. Ap 5, 6 – isto é, morto e ressuscitado. 
[12] A propósito do Livro Apocalipse de São João, a palavra proskynein aparece 24 vezes.
[13] O autor diz “Diante de tudo isso, vale a pena perguntar: Qual o sentido do ajoelhar-se na celebração Eucarística para mim?”. Ora, não se pode particularizar uma matéria universal e, uma vez que a liturgia não é “minha” (aliás, atestam-no os documentos magisteriais), não se entende, no contexto do debate a expressão “para mim”, redundando em absurdo.
[14] Cânon XX
[15] IGMR 20. Grifo nosso.
[16] Ibid. 21
[17] Skopeuo, literalmente significa “objetivo”, “pretender”, “ter em vista”. O radical está presente em palavras como telescópio que remontam a ideia de ver, enxergar.