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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Deus e o Homem


INTRODUÇÃO

Abordar de maneira simples e direta a questão da dignidade do homem a partir da Constituição Pastoral Gaudium et Spes é uma tarefa que requereria um grande esforço e demandaria um espaço de tempo quase que infinito, já que o assunto toca o nosso mistério mais significativo: a nossa união ontológica com Deus e nosso agir em vista dele.
Propomo-nos de uma forma singela a apresentar de forma breve, mas buscando um olhar espiritual, a dignidade do homem. Fazemo-lo a partir da relação entre DEUS E O HOMEM, isto é, criador e criatura através de uma pergunta que a muito ecoa na história do pensamento humano e que buscamos sua resposta pelo caminho da Palavra de Deus.
Em seguida, queremos mostra que esta descoberta gera um agir e que este agir está fulcrado na consciência moral do homem que reproduz, em seu silencio, o grito de auto- conhecimento.
Não pretendemos esgotar o assunto, antes lançamos questionamentos sobre o HOMEM E DEUS, acompanhando um movimento anabático que requer do homem conhecimento de si e domínio de seu ser rumo ao que se orienta naturalmente.
Essa resposta só pode ser apreendida se, no âmbito do amor, entendermos que nossa diretriz máxima e irrevogável, comunicada por Deus, deve ser seguida retamente e aperfeiçoada.
Ainda uma advertência deve ser feita: conhecer-se a si mesmo é o principio do conhecimento de Deus, isto é, conhecer sua consciência e dignidade é conhecer-se diante de Deus.

  
I.                   DEUS E O HOMEM

Pantwn crhmatwn metron estin anqrwpoV, twn men ontwn, wV estin twn d´ouk ontwn wV ouk estin[1]
(Protágoras)

Colocar o problema da dignidade do homem numa perspectiva teológica é antes de tudo estabelecer o nexo entre ele e seu Criador, estabelecer a sua medida e seus limites buscando uma compreensão do  homem, que é magnânima, mas que nunca ultrapassa Deus, seu autor e fim último. A dignidade do homem é antes de tudo, reflexo de sua condição criatural. Nascido das mãos de Deus é coroação da criação, marcado pela contingência é eterno mendigo de Deus.
O homem tem naturalmente a capacidade de domesticar tudo a sua volta, e de buscar intervir em sua realidade no sentido de transformar e aperfeiçoar o ambiente para sua vivencia e conveniência, de forma que todas as coisas lhes são ordenadas. Imprime com isso sua marca no mundo e procura um fim ultimo para si e sua obra. Muitas vezes acomodou-se em si mesmo e, de certa forma, acabou por perder-se em suas medidas das coisas e de si mesmo.

1.1. A pergunta que grita mesmo no silêncio.

Quid est homo?

 A pergunta que acaba por nos assaltar, em dado momento da vida é exatamente sobre a essência e existência deste ser em especial que encerra em si uma fortaleza inexpugnável e uma fraqueza abissal, esta pergunta ressoa  nos corações da humanidade desde há muito tempo, vários ensaios de resposta foram propostos, uns radicais e outros simplesmente fatalistas. Uns cheios de esperança e outros dotados de um profundo non sense. Uns tentaram exaustivamente enclausurar o ser do homem em um conceito de essência, outros simplesmente preferiram somente a existência que se diz a medida do tempo.
Todas as questões propostas e discutidas sobre o homem, tem em si um “Q” de verdadeiro, mas encerram muitos aspectos que acabaram por resvalar sua imagem e, por conseguinte, a sua dignidade natural de forma a desconfigurar o verdadeiro rosto do homem, dotado de uma dignidade impar e de uma série de características que compõem o seu ser homem em plenitude, justamente por que evocam uma característica com essência inegável.
Resgatar, em nossos dias o rosto, reconstruindo o homem e captando dele sua proveniência não é trabalho de pouca monta, já que se a dignidade é grande, igualmente grande foi o estrago feito, não só por teorias laterais ou erronias, mas por uma profunda marca da práxis amoral e antinatural de nosso século, prática esta que foi forjada ao longo do tempo, como a chuva que corrói, aos poucos, a maior das rochas.
Essa pergunta, que se apresenta no silêncio das reflexões, e grita ao mundo com um espantoso e sonoro berro que não foi dado, causa a inquietude e a tranqüilidade, revela a fraqueza e a fortaleza, revela e vela o mistério do homem de hoje e de sempre.
Compreender essa pergunta é responder sem respondê-la! É, muitas vezes, saciar-se  de migalhas na busca de compreender aquilo que somos sem nunca encerrar a questão num  conceito plástico que não nos leva senão a uma decepção, já que nossa dignidade alça vôos mais altos que nossa própria mente não consegue conhecer a priori: “Ainda não se manifestou o que havemos de ser...” [2]
Compreender a dignidade do homem é muitas vezes olhar características pela impossibilidade de olhar o todo, e não se contentar com elas nem deixar-se cair na tentação de ficar somente com uma parte, mas saber que ela se encaixa, positiva ou negativamente num todo.

1.2. Caminho de resposta, caminho de esperança.

“Pois as Sagradas Escrituras ensinam que o homem foi criado ‘à imagem de Deus’, capaz de conhecer e amar seu Criador, que o constituiu senhor de todas as coisas terrenas para que as dominasse e usasse, glorificando a Deus”
(Gaudium et Spes)

Apresentar uma chave de resposta é sempre um problema em nível filosófico, pois existem tantas chaves quanto existem páginas escritas, cada uma com sua relevância própria e seu caráter próprio.
Contudo, dentro de nossa proposta teológica, nos deparamos com uma série de testemunhos da Sagrada Escritura, ou que dela decorrem que atestam claramente a via de resposta a seguir. Contudo, não é impossível conjugar, por oposição ou por corroboração às teses contidas na Sagrada Escritura. Se pegarmos o mais nihilista dos autores, veremos que capta do homem uma faceta que é de fato pertencente ao homem, mas que não diz todo o ser do homem, e que está igualmente expressa, de certa forma na Sagrada Escritura.

“Basta evocar brevemente os textos bíblicos principalmente, os dos capítulos iniciais do Gênesis, tão conhecidos, tão simples, tão ricos e que definem, ao mesmo tempo que a contingência e humildade do homem, sua nobreza de ‘imagem de Deus’...
O autor sagrado emociona e nos emociona ao escrever estas verdades essenciais: a de nossa dignidade nativa, a de nossa vocação régia, a da complementariedade dos sexos na identidade da mesma natureza diviniforme.”[3]

Entender a complexidade do homem a partir das escrituras (e daí ver o homem em sua perspectiva religiosa, isto é, enquanto relaciona-se como criatura com Deus, seu Criador) torna-se uma viagem na dignidade do homem composto da “linfa” do céu e, ao mesmo tempo, do limo da terra.
 “O senhor Deus formou o homem do barro da terra, e inspirou-lhe no rosto um sopro de vida e o homem se tornou vivente.” [4]
“Aqui se expressa não só provirmos de uma deliberação e de uma palavra do Criador, mas que também nas entranhas somos aparentados com o Cosmos, ao Jardim que Ele nos deu para cultivar. A poesia da concepção está admiravelmente traduzida naquela escultura[5] medieval que representa adão ainda emergindo, quanto ao busto, do barro moldado pelas mãos de Deus, mas já trazendo no rosto os traços de seu modelador.” [6]

Assim, estabelecido a origem do homem a partir da Sagrada Escritura como caminho de resposta à questão do homem, chegamos a algo que nos deixa boquiabertos. Um estupor diante desse mistério da criação que se impõe inegável diante de nossa inteligência. O homem em relação com o Cosmos e o homem à semelhança de Deus!
Vislumbrar esse mistério e contemplar essa dignidade é antes um ponto de partida para compreender todo o nosso “modus vivendi”, que um ponto de chegada. Este estupor antes de paralisar, aguça o nosso ser e nos atrai para tal mistério.
O homem, nesta perspectiva é sempre um ser complexo e sempre necessitado de um Ser que o dê significado. É alguém que domina, sempre em função de Outro como um fim ultimo não só de si, mas de todas as coisas que manipula, e é dominado posto que “fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti”[7] . Sua dignidade se mistifica, na sua origem divina e se desmistifica na sua compreensão ontológica e relacional com o mundo.
O caminho está traçado, resta-nos caminhar ou rejeitar essa estrada, que embora estreita, é bela justamente porque encerra nosso ser humano e nosso ser divinizado por amor de Deus que se dá e nos interpela por uma resposta.
  
II.    O HOMEM E DEUS

Por ser imagem de Deus o individuo humano tem a dignidade de pessoa: ele não é apenas alguma coisa, mas alguém. É capaz de conhecer-se, de possuir-se e de doar-se livremente e entrar em comunhão com outras pessoas, e é chamado por graça a uma aliança com seu Criador, a oferecer-lhe uma resposta de fé e de amor que ninguém mais pode dar em seu lugar.
(Catecismo da Igreja Católica, n. 357)

De fato a dignidade do homem provém de um lacre na alma que o identifica como criatura de Deus dotada de uma incrível virtude. Na consciência o homem descobre e decifra um código segundo o qual age, mas que não é elaborada por ele mesmo e à qual está obrigado. Tal dignidade faculta o individuo a responder livremente aos apelos de seu coração por algo de eterno e a agir segundo esta perspectiva constante em si.
É um movimento diabático, de convite e resposta,  que envolve o homem em sua totalidade e o faz agir de acordo com uma norma a qual não pode rejeitar e que lhe diz faça isso e não aquilo.

2.1. O silêncio que possibilita um grito

A consciência é uma Lei de Nosso Espírito que ultrapassa nosso espírito, nos faz imposições, significa a responsabilidade e dever, temor e esperança... É a mensageira daquele que, no mundo da natureza bem como no mundo da graça nos fala através de um véu, nos instrui e nos governa. A consciência é o primeiro de todos os vigários de Cristo.
(Newman)

 No silencio da consciência do homem, uma palavra ecoa para o bem dele mesmo que traz como conseqüência pratica e imediata o bem de outros e que é reflexo, por própria condição de criatura, como vimos, de Deus.
Essa intimidade que circunda o homem o impulsiona ao bem moral, ratificando a própria dignidade do homem. Assim, quanto mais obedece aos ditames da reta consciência, mais o homem naturalmente se aproxima de Deus e mais reconhece Nele seu próprio rosto, desvendando os mistérios de si e de seu Sumamente Outro.
Contudo, para ouvir a vos de sua consciência é necessário um altíssimo grito! O grito do “eu mesmo”, isto é, o conhecimento de si em uma escala cada vez mais crescente. O adágio socrático “Conhece-te a ti mesmo” faz referencia perfeita a este grito do auto conhecer-se. De fato a possibilidade que nos proporciona a consciência é o grito de nós mesmos de nossa dignidade, vontade e inteligência conjugada nas ações livres.
O homem diz o seu ser no que faz, isto é, no seu agir revela Deus em sua intimidade na consciência. Tal é a implicância e exigência desta dignidade: a retidão da consciência moral.
O Concílio, fazendo eco a Pio XII, ao afirmar que: “A consciência é o núcleo secretíssimo e o sacrário do homem onde ele está sozinho com Deus e onde ressoa a sua voz”[8] quer nos propor exatamente a dignidade da consciência que precisa conhecer-se à luz de Deus em sua intimidade única.
Assim, na busca de formular e dirigira as ações, o conhecer-se e o conhecer a Deus são duas diretrizes que incidem na mesma consciência em vista do bem. Não se pode de fato ignorar a consciência, uma vez que esta propõe um agir segundo tais parâmetros.
Desta forma a dignidade do homem, só se realiza e tem sentido na ação consciente para o bem, tanto o moral quanto o metafísico, que é proposto naturalmente. Fazer o bem  constitui o ordinário e natural na vida do homem e é exatamente esse agir que o conforma ao seu criador e o dignifica como criatura para o bem.
   
CONCLUSÃO

Nestes pequenos parágrafos nos detivemos em estabelecer o ligame entre o Deus e o homem, enquanto criador que dota a criatura de capacidade e dignidade para encontrá-lo em todas as coisas e, ao mesmo tempo, a transcendê-las rumo descoberta de si, que desemboca necessariamente num agir segundo Aquele de quem é imagem.
Depois de tantas teorias e práticas parciais de compreensão do ser do homem apresentamos um caminho de contemplação do rosto de Deus e, por conseguinte, do rosto do homem e, tendo chegado na contemplação de sua dignidade, estabelecemos o agir segundo a consciência.
É evidente que não pretendíamos esgotar a questão, ao contrário,  pretendíamos levantar questionamentos sobre um caminho seguro que nos mostrasse o homem em sua dignidade e em seu agir que a revela.
É fato que outros pontos mereceriam um olhar mais atencioso, mas que romperia com nosso escopo: o de descobrir na dignidade e auto-conhecimento do homem, um caminho para Deus.


BIBLIOGRAFIA

Fontes
Concilio Vaticano II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes. Petrópolis, Vozes, 1968.
Catecismo da Igreja Católica – Edição típica vaticana. São Paulo, Loyola, 1999.
JOÃO PAULO PP. II,  Carta encíclica Veritatis Splendor. São Paulo Paulinas, 1993.

Obras consultadas
SADA, R e MONROY. Curso de Teologia Moral,  2º Edição. Lisboa, Rei dos Livros, 1992
S. AGOSTINHO. Confissões. São Paulo, Paulus, 1984.
GOMES, C. F. Riquezas da mensagem Cristã. Rio de Janeiro, Lumem Christ, 1981.
MORA, J.F. Dicionário de Filosofia. São Paulo, Martins Fontes, 2001.





[1] “O homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que são enquanto não são”
[2] 1Jo 3,2
[3] C.F. GOMES, Riquezas da Mensagem Cristão, p. 239.
[4] Gn 2,7
[5] Nota de D. Cirilo: H. de Lubac alude a essa escultura existente na Catedral de Chartres em “O Drama do Humanismo Ateu”, tr., Porto, pág. 15.
[6] Riquezas da Mensagem Cristão, p. 239.
[7] S. AGOSTINHO, Confissões, p. 15.
[8] Constituição Pastoral  Gaudium et Spes, n 16.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Ligar e Desligar



Achei no “rescaldo” do meu arquivo digital da época de faculdade um trabalho apresentado sobre um tema interessante: “Ligar e Desligar”. Não lembro bem, mas tenho a impressão de que esse trabalho foi feito em grupo e como é de se esperar, não lembro, tampouco, quem foi o grupo.
Espero que seja boa a leitura e possa ajudar a compreender o tema.

Deus abençoe



INTRODUÇÃO

Neste trabalho, de forma concisa, apresentar-nos-á os termos “ligar” e “desligar” no seu significado bíblico e na sua compreensão e aplicação eclesial.

Partindo, em primeiro lugar, da Escritura, dar-se-á a interpretação dos textos que se referem a estes termos ou que sejam muito próximos destes. Após, tomando como base trechos do Catecismo Romano e do Catecismo da Igreja Católica, passar-se-á à compreensão e aplicação eclesial do “ligar e desligar”. Por fim, vislumbraremos, na Constituição Dogmática sobre a Igreja, “Lúmen Gentium” do Concílio Ecumênico Vaticano II, os supracitados termos e o que o concílio tem a dizer sobre eles.

I. TEXTOS BÍBLICOS RELACIONADOS AOS TERMOS E SUA EXPLICAÇÃO

Abordar-se-á agora aos textos de Mt 16,19-20; 18,18 e Jo 20,19-23, pois são os textos que tratam do assunto em questão. Haverá ainda alguma referência a outros textos que façam algumas ressonâncias a ele.

1.1. Os textos do evangelho de Mateus: Mt 16,19; 18,18

“A ti darei as chaves do Reino de Deus: o que ligares na terra ficará ligado no céu; o que desligares na terra ficara desligado no céu” [1]. “Eu vos asseguro que o que ligardes na terra ficará ligado no céu, o que desligares na terra ficará desligado no céu” [2].

Estes dois textos, segundo Gonzalo Flórez[3], se referem ao poder de perdoar pecados cometidos após o Batismo.

O primeiro texto, Mt 16,19 se insere na profissão de fé petrina e na missão confiada pelo Senhor aos apóstolos, sobretudo a Pedro, chefe deste corpo apostólico. Segundo Schoëckel, “Pedro terá as chaves de acesso ao Reino de Deus e terá o poder de julgar, perdoar e condenar, ratificado por Deus” Tal poder é dado também aos outros apóstolos, como fica claro no texto de Mt 18,18. [4]

Na comunidade judaica, os termos “ligar” e “desligar” se relacionam ao poder que tinham os principais da comunidade de separar da mesma comunidade alguns dos membros, seja por má conduta ou doutrina errônea. Primeiro, o infrator era afastado da comunidade (ligar) depois, podia cumprir uma pena – se arrependido – e, por fim, ser readmitido na comunidade (desligar). “Ligar” e “desligar” eram o máximo de poder religioso dos dirigentes. Tal procedimento foi seguido nas comunidades Judeu-Cristãs.

A Penitência vivida na Igreja nos primeiros séculos adapta-se a este modo de entender o poder de ligar e desligar: começa afastando o pecador da comunhão eucarística, para terminar por readmiti-lo à mesa do Senhor. [5] A ação de ligar manifesta a ruptura da aliança com Deus por parte do pecador, ligando-o ao domínio do diabo para que se disponha a sair desta escravidão e do seu influxo maligno. [6]

O afastamento de um membro, por um tempo, da vida litúrgica da comunidade e a sua posterior re-incorporação, mais que uma medida moral ou disciplinadora, explicita a necessidade de viver em verdade e sinceridade a união com Deus e com os irmãos. A comunhão entre os membros do Corpo de Cristo é um mistério que deve manifestar-se na vida dos Cristãos, caso em contrário, cabe à Igreja fazer com que seus filhos trilhem o caminho da reconciliação com Deus e com os irmãos.

Por fim, tais textos podem ser entendidos, tendo diante dos olhos a missão e a natureza da Igreja. O poder de “ligar” e “desligar” se refere ao governo da Igreja em todos os seus aspectos (doutrinal, disciplinar, caritativo, etc.) e também a sua intervenção em relação aos pecadores. Como a Igreja pode ser entendida também através de categorias jurídicas e disciplinares, tal interpretação também é válida. “La reconciliación de los pecadores derivaria del ejercicio de la potestad jerárquica  de la Iglesia, em cuanto atiende a la unidad y disciplina de sus membros.[7]

1.2. Os textos do evangelho segundo João (Jo 10,19-23)

“Ao entardecer desse dia, o primeiro da semana, os discípulos estavam com as portas bem fechadas, por medo dos judeus. Jesus chegou, pôs-se no meio deles e lhes diz: ‘ – A paz esteja convosco! ’ dito isto mostrou-lhes as mãos e os lados. Os discípulos se alegraram ao ver o Senhor. Jesus repetiu: ‘ – A paz esteja convosco!’Como o Pai me enviou, eu vos envio’ . Disse isso, soprou sobre eles e disse-lhes: ‘ – Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados; a quem os mantiverdes, ficarão mantidos”.

Schoëckel apresenta, na Bíblia do Peregrino, em comentário muito elucidativo a respeito do texto:

“O poder de perdoar ou imputar pecados soa como variante de Mt 18,18 e Mt 16,19. A expressão polar (os dois termos) pode significar totalidade (cf. Is 22,22) o poder simbolizado pelo controle da porta ‘Eu lhe porei no ombro a chave do palácio de Davi: o que ele abrir ninguém fechará, o que ele fechar ninguém abrirá)’ os verbos estão na passiva teológica, ‘ficam perdoados’ (por Deus). É um poder que discerne e julga que reconcilia ou exclui, que se dá em primeiro lugar aos discípulos, e que eles exercerão de formas diversas (aqui entram as interpretação e explicação posteriores): admitindo ou não o batismo; na penitência também sacramental (embora imputar ou reter pecados não seja ato sacramental, mas sim exercício de poder).”

A saudação do Senhor[8] aos discípulos virá a por fim no medo humano diante do sobrenatural. A paz é fruto da presença do Ressuscitado. O envio dos discípulos análogo ao seu próprio envio, da parte do Pai, se relaciona com a ação do Espírito Santo na Igreja. Jesus sopra sobre os discípulos e lhes o Espírito Santo, que aparece como dom de consolação, congregação e assistência no cumprimento da missão dos crentes e discípulos de Jesus. “Todo lo que precede em la discripcion de esta primera aparición de Jesús a sus discipulos no viene sino a resaltar la importancia del ‘logion’ final: ‘A quienes perdonéis los pecados, lês quedam perdonados; a quienes se los retengas (o imputeis), les quedan retenidos (o imputados)[9]

O perdão dos pecados é apresentado como um poder dado por Jesus para ser exercido na e pela Igreja e não como um mandado de anúncio. Tal poder no Novo Testamento é uma graça fruto da redenção, presente de Cristo para a Igreja. Os discípulos tornam-se “portadores del perdón que El mismo ha conquistado y comunicado [10]”.

Quando Jesus diz “... a quem mantiverdes (retiverdes) ficarão mantidos (retidos) [11]”, fica mais explicito que ele deu aos seus discípulos poder sobre o perdão dos pecados. O verbo reter no Novo Testamento significa sujeitar, agarrar ou apoderar-se de alguém; no caso ele apareceu contraposto a perdoar, com o sentido de imputar ou de reter.
Tal texto é muito próximo do texto de Mt. Pode-se dizer que, embora provenientes de tradições diferentes, há uma interdependência entre eles que tornará mais e melhor compreendido esse poder de ligar/ reter e desligar/ perdoar.

II. “LIGAR” E “DESLIGAR” NO CATECISMO ROMANO E NO CATECISMO ATUAL.

Além da visão bíblica sobre os termos “ligar” e “desligar” e a sua compreensão na Igreja, agora, passa-se a tratar desses termos e seus respectivos significados para a Igreja enquanto são apresentados pelos catecismos, seja o Catecismo Romano (pós-concílio tridentino) seja o Catecismo da Igreja Católica (pós-concílio Vaticano II). Tal abordagem permitirá uma compreensão pastoral acerca do assunto em questão.

2.1. “Ligar” e “desligar” no Catecismo Romano

No Catecismo Romano, os termos “ligar” e “desligar” encontram-se na segunda parte, que trata dos sacramentos, no capítulo quinto, destinado ao sacramento da Penitência, no parágrafo onze. O fato de os termos situarem-se no tratado dos sacramentos, em especial o da penitência, mostra a compreensão da Igreja, sobretudo (e não exclusivamente) no contexto da absolvição ou não dos pecados. Diz o Catecismo Romano:

“... nos atos e palavras do sacerdote reconhecemos a misericórdia de Deus, que perdoa esses pecados. Isto é, que provam, absolutamente a palavra do Salvador: ‘Eu te darei as chaves do Reino dos céus... Tudo o que desligares na terra, será desligado também no céu’”[12]

Portanto, a Igreja consolida-se, após Trento, na compreensão e na vivência do sacramento da Penitência como a atualização e realização eclesial das palavras do Senhor a Pedro. A interpretação de Mt 16,19 e 18,18 juntamente com a de Jo 10, 19-23 fundamenta o sacramento da Penitência e o seu caráter de “reunir” o pecador a Deus e à Igreja ou de mantê-lo desunido deles caso não os procure ou os procure sem arrependimento necessário.

 2.2. “Ligar” e “desligar” no catecismo da Igreja Católica

O atual catecismo apresenta os termos, ou o tema do poder dito “das chaves” em dois momentos diferentes: O primeiro, na primeira parte – a profissão de fé Cristã: o Capítulo III – Creio no Espírito Santo; Artigo X – creio no perdão dos pecados; item II – o Poder das Chaves. O segundo momento, na Segunda Parte – A celebração do mistério Cristão; Segunda Seção – Os sete sacramentos da Igreja; No capítulo II – Os sacramentos de cura; no Artigo IV – O sacramento da Penitência e da Reconciliação; item VI – O sacramento da penitência e da reconciliação.

Nessas duas ocorrências, quer “ligar” e “desligar”, quer “o poder das Chaves”, estão inseridos no horizonte do perdão dos pecados e da reconciliação do Cristão pecador com Deus e com a Igreja. Em primeiro lugar, enfatiza-se o Cristo que confere aos apóstolos um poder e uma missão de perdoar os pecados:

“Depois da ressurreição, Cristo enviou seus Apóstolos para anunciar a todas as nações o arrependimento em seu Nome em vista da remissão dos pecados (Lc 24, 47). Este ‘ministério da reconciliação’ (2Cor 5,18), os Apóstolos e seus sucessores não o exercem somente anunciando aos homens o perdão de Deus merecido para nós por Cristo e chamando-os à conversão e à fé, mas também comunicando-lhes a remissão dos pecados pelo Batismo e reconciliando-os com Deus e com a Igreja graças ao poder das chaves recebido de Cristo.” [13]

Depois se acentua mais a dimensão eclesial desse perdão:

“Conferindo aos Apóstolos seu próprio poder de perdoar os pecados, o Senhor também lhes dá a autoridade de reconciliar os pecadores com a Igreja. Esta dimensão eclesial de sua tarefa exprime-se principalmente no solene palavra de Cristo a Simão Pedro: ‘Eu te darei as chaves do Reino dos céus, e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será desligado nos céus’ (Mt 16,19)...
As palavras “ligar” e “desligar” significam: aquele que excluirdes da nossa comunhão, será excluído da comunhão com Deus; aquele que receberdes de novo à nossa comunhão, Deus o acolherá também na sua. A reconciliação com a Igreja é inseparável da reconciliação com Deus” [14]

Estes dois textos, que dispensam comentários, deixam claro, portanto que a Igreja encara quer o “poder das Chaves”, quer o poder de “ligar” e “desligar” como dons de Cristo para os seus com o fim de edificar a Igreja através do perdão dos pecados, readmitindo os fieis na comunhão com a comunidade e com Deus mesmo.
  
 III. “LIGAR” E “DESLIGAR” NA LG 22

A Constituição Dogmática sobre a Igreja, do Concílio Vaticano II; ao tratar da ordem dos bispos e da sua participação no magistério e no regime pastoral dos Apóstolos, e união com o sucessor de Pedro; acaba por tocar o tema do “poder das chaves” e dos termos “ligar” e “desligar”.

“...a Ordem dos Bispos, que sucede ao colégio apostólico no magistério e no regime pastoral, e na qual perdura continuamente o corpo apostólico em união com a sua cabeça, o Romano Pontífice, e nunca sem ele, é também detentora do poder supremo e pleno sobre a Igreja universal, mas este poder não pode ser exercido senão com o consentimento do Pontífice Romano. Só a Pedro o Senhor pôs como rocha e portador das chaves da Igreja (cf. Mt 16,18s) e constituiu pastor de toda a sua grei (cf. Jo 21,15ss); mas o oficio que deu a Pedro de ligar e desligar (cf. Mt 16,19), é sabido que o deu também ao colégio dos apóstolos, unido com sua cabeça (cf. Mt 18,18;28,16-20).[15]

O Concílio afirma que as “chaves” foram confiadas a Pedro, isto é, que o papa é o detentor do poder pleno e supremo sobre a Igreja. As “chaves”, aqui, são lidas como autoridade máxima, submetida à Palavra, sobre toda a Igreja. O oficio dado a Pedro de “ligar” e “desligar” também é lido como autoridade e pastoreio sobre toda a Igreja; mas sobre este ofício é dito que também foi confiado aos demais apóstolos e, assim, também aos bispos, com a condição da comunhão com o papa, cabeça do colégio episcopal.

Aqui, os termos “ligar” e “desligar,” são empregados, não negando seu sentido de exclusão e re-inclusão na comunhão, ou aquele de perdoar ou reter os pecados, mas no sentido mais amplo que tem o ministério dos apóstolos na Igreja. Os poderes de excluir e de re-incluir na comunhão e de perdoar ou de reter os pecados estão contidos naquele mais amplo, confiado pelo Senhor aos seus apóstolos e aos seus sucessores.

“Ligar” e “desligar”, na LG 22, indicam, pois, o poder ou a capacidade dos apóstolos e dos seus sucessores, de administrar na terra os bens do céu e de agir na terra em nome Daquele que está no céu. Os sucessores dos apóstolos são assistidos e confirmados em seu pastoreio, ensino e santificação do povo de Deus pelo próprio Deus, desde que o façam em comunhão com o sucessor de Pedro, inclusive no que concerne ao sacramento da Penitência.

Portanto, “ligar” e “desligar” aparecem no Concílio Vaticano II indicando, sem excluir o seu sentido para o sacramento da penitência, a autoridade e o poder apostólico do papa e dos bispos (autoridade, poder, concedidos a eles, por Deus, em Cristo, no Espírito Santo, através da sucessão apostólica) para o serviço de santificação, ensino e pastoreio do povo de Deus.

CONCLUSÃO

      Ao fim deste trabalho, fica patente que os termos “ligar” e “desligar”, contidos em Mt 16, 19 e em Mt 18, 18 podem ser interpretados basicamente de duas formas:

      A primeira interpreta os supracitados termos referindo-os a Jo 20, 23, ao perdão e à retenção dos pecados, poder que o Ressuscitado dá aos doze e que é paralelo ao significado de “ligar” e “desligar”, pois esses termos se referiam à exclusão e re-inclusão de membros das comunidades judaicas que tivessem cometido alguma falta grave. Essa primeira interpretação ligou os termos em questão ao contexto penitencial, pois eles provêm daí, e à prática da penitência, consolidando-se, por fim, na Confissão sacramental com absolvição dos pecados. Os Santos Padres e a tradição catequética e doutrinal da Igreja reforçam essa via de compreensão.

      A segunda, interpreta “ligar” e “desligar” no contexto do poder de governo dado pelo Senhor a Pedro em Mt 16,18 e as Doze em Mt 18,18. Tal interpretação enfoca o carisma que os apóstolos presididos por Pedro receberam para ensinar a verdadeira doutrina, santificar o povo e guiá-lo para a salvação; poder que foi transmitido aos bispos e ao papa. Eles, com seu ministério agem em nome e com o poder de Deus para o bem da Igreja e Deus possibilita e confirma tal ministério: o que é ligado na terra é ligado no céu.

Essas duas interpretações não se contrapõem, mas se completam. De fato, a administração do sacramento da penitência e o perdão dos pecados próprio deste sacramento são realidades incluídas naquela maior e mais ampla do ministério dos bispos e do papa e de sua mediação para a Igreja.

Portanto, “ligar” e “desligar” são termos que se referem à mediação das realidades salvíficas de Cristo para a Igreja, no ministério dos bispos, sucessores dos apóstolos unidos ao papa; sendo também referentes ao perdão dos pecados, que é parte desta mediação salvífica e expressão mais eloqüente dela. 


[1] Mt 16,19.
[2] Mt 18,18.
[3] G. FLÓREZ, Penitencia y unción de enfermos, Madrid, 2001, p. 66.
[4] A Bíblia do Peregrino, São Paulo, 2002. Comentário ao texto de Mt 18,18.
[5] Ibidem, p 67.
[6] Ibid, p.70.
[7] Ibid, pp. 71-72.
[8] Ibid. p.73.
[9] Ibid, p. 74.
[10] Ibid, p. 75
[11] Jo 20,23.
[12] CATECISMO ROMANO, Petrópolis, (sem data) p. 318.
[13] CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, Petrópolis, 1993, n. 981
[14] Ibid, nn. 1444-45.
[15] CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Dogmática Lumen Gentium”, Petrópolis, 1968  n. 22.