INTRODUÇÃO
Abordar de maneira simples e direta a questão da dignidade do homem a
partir da Constituição Pastoral Gaudium
et Spes é uma tarefa que requereria um grande esforço e demandaria um
espaço de tempo quase que infinito, já que o assunto toca o nosso mistério mais
significativo: a nossa união ontológica com Deus e nosso agir em vista dele.
Propomo-nos de uma forma singela a apresentar de forma breve, mas
buscando um olhar espiritual, a dignidade do homem. Fazemo-lo a partir da
relação entre DEUS E O HOMEM, isto é, criador e criatura através de uma
pergunta que a muito ecoa na história do pensamento humano e que buscamos sua
resposta pelo caminho da Palavra de Deus.
Em seguida, queremos mostra que esta descoberta gera um agir e que este
agir está fulcrado na consciência moral do homem que reproduz, em seu silencio,
o grito de auto- conhecimento.
Não pretendemos esgotar o assunto, antes lançamos questionamentos sobre o
HOMEM E DEUS, acompanhando um movimento anabático que requer do homem
conhecimento de si e domínio de seu ser rumo ao que se orienta naturalmente.
Essa resposta só pode ser apreendida se, no âmbito do amor, entendermos
que nossa diretriz máxima e irrevogável, comunicada por Deus, deve ser seguida
retamente e aperfeiçoada.
Ainda uma advertência deve ser feita: conhecer-se a si mesmo é o
principio do conhecimento de Deus, isto é, conhecer sua consciência e dignidade
é conhecer-se diante de Deus.
I.
DEUS E O HOMEM
(Protágoras)
Colocar o problema da dignidade do homem numa perspectiva teológica é
antes de tudo estabelecer o nexo entre ele e seu Criador, estabelecer a sua medida
e seus limites buscando uma compreensão do
homem, que é magnânima, mas que nunca ultrapassa Deus, seu autor e fim
último. A dignidade do homem é antes de tudo, reflexo de sua condição
criatural. Nascido das mãos de Deus é coroação da criação, marcado pela
contingência é eterno mendigo de Deus.
O homem tem naturalmente a capacidade de domesticar tudo a sua volta, e
de buscar intervir em sua realidade no sentido de transformar e aperfeiçoar o
ambiente para sua vivencia e conveniência, de forma que todas as coisas lhes
são ordenadas. Imprime com isso sua marca no mundo e procura um fim ultimo para
si e sua obra. Muitas vezes acomodou-se em si mesmo e, de certa forma, acabou
por perder-se em suas medidas das coisas e de si mesmo.
1.1. A pergunta que grita mesmo no silêncio.
“Quid est homo?”
A pergunta que acaba por nos
assaltar, em dado momento da vida é exatamente sobre a essência e existência
deste ser em especial que encerra em si uma fortaleza inexpugnável e uma
fraqueza abissal, esta pergunta ressoa
nos corações da humanidade desde há muito tempo, vários ensaios de
resposta foram propostos, uns radicais e outros simplesmente fatalistas. Uns
cheios de esperança e outros dotados de um profundo non sense. Uns tentaram exaustivamente enclausurar o ser do homem
em um conceito de essência, outros simplesmente preferiram somente a existência
que se diz a medida do tempo.
Todas as questões propostas e discutidas sobre o homem, tem em si um “Q”
de verdadeiro, mas encerram muitos aspectos que acabaram por resvalar sua
imagem e, por conseguinte, a sua dignidade natural de forma a desconfigurar o
verdadeiro rosto do homem, dotado de uma dignidade impar e de uma série de
características que compõem o seu ser homem em plenitude, justamente por que
evocam uma característica com essência inegável.
Resgatar, em nossos dias o rosto, reconstruindo o homem e captando dele
sua proveniência não é trabalho de pouca monta, já que se a dignidade é grande,
igualmente grande foi o estrago feito, não só por teorias laterais ou erronias,
mas por uma profunda marca da práxis amoral e antinatural de nosso século, prática
esta que foi forjada ao longo do tempo, como a chuva que corrói, aos poucos, a
maior das rochas.
Essa pergunta, que se apresenta no silêncio das reflexões, e grita ao
mundo com um espantoso e sonoro berro que não foi dado, causa a inquietude e a
tranqüilidade, revela a fraqueza e a fortaleza, revela e vela o mistério do
homem de hoje e de sempre.
Compreender essa pergunta é responder sem respondê-la! É, muitas vezes,
saciar-se de migalhas na busca de
compreender aquilo que somos sem nunca encerrar a questão num conceito plástico que não nos leva senão a
uma decepção, já que nossa dignidade alça vôos mais altos que nossa própria
mente não consegue conhecer a priori: “Ainda não se manifestou o que havemos de
ser...” [2]
Compreender a dignidade do homem é muitas vezes olhar características
pela impossibilidade de olhar o todo, e não se contentar com elas nem deixar-se
cair na tentação de ficar somente com uma parte, mas saber que ela se encaixa,
positiva ou negativamente num todo.
1.2. Caminho de resposta, caminho de esperança.
“Pois as Sagradas Escrituras ensinam que o homem foi
criado ‘à imagem de Deus’, capaz de conhecer e amar seu Criador, que o
constituiu senhor de todas as coisas terrenas para que as dominasse e usasse,
glorificando a Deus”
(Gaudium et Spes)
Apresentar uma chave de resposta é sempre um problema em nível
filosófico, pois existem tantas chaves quanto existem páginas escritas, cada
uma com sua relevância própria e seu caráter próprio.
Contudo, dentro de nossa proposta teológica, nos deparamos com uma série
de testemunhos da Sagrada Escritura, ou que dela decorrem que atestam
claramente a via de resposta a seguir. Contudo, não é impossível conjugar, por
oposição ou por corroboração às teses contidas na Sagrada Escritura. Se
pegarmos o mais nihilista dos autores, veremos que capta do homem uma faceta
que é de fato pertencente ao homem, mas que não diz todo o ser do homem, e que
está igualmente expressa, de certa forma na Sagrada Escritura.
“Basta evocar brevemente os textos bíblicos
principalmente, os dos capítulos iniciais do Gênesis, tão conhecidos, tão
simples, tão ricos e que definem, ao mesmo tempo que a contingência e humildade
do homem, sua nobreza de ‘imagem de Deus’...
O autor sagrado emociona e nos emociona ao escrever
estas verdades essenciais: a de nossa dignidade nativa, a de nossa vocação
régia, a da complementariedade dos sexos na identidade da mesma natureza
diviniforme.”[3]
Entender a complexidade do homem a partir das escrituras (e daí ver o
homem em sua perspectiva religiosa, isto é, enquanto relaciona-se como criatura
com Deus, seu Criador) torna-se uma viagem na dignidade do homem composto da
“linfa” do céu e, ao mesmo tempo, do limo da terra.
“O senhor Deus
formou o homem do barro da terra, e inspirou-lhe no rosto um sopro de vida e o
homem se tornou vivente.” [4]
“Aqui se expressa não só provirmos de uma deliberação
e de uma palavra do Criador, mas que também nas entranhas somos aparentados com
o Cosmos, ao Jardim que Ele nos deu para cultivar. A poesia da concepção está
admiravelmente traduzida naquela escultura[5]
medieval que representa adão ainda emergindo, quanto ao busto, do barro moldado
pelas mãos de Deus, mas já trazendo no rosto os traços de seu modelador.” [6]
Assim, estabelecido a origem do homem a partir da Sagrada Escritura como
caminho de resposta à questão do homem, chegamos a algo que nos deixa
boquiabertos. Um estupor diante desse mistério da criação que se impõe inegável
diante de nossa inteligência. O homem em relação com o Cosmos e o homem à
semelhança de Deus!
Vislumbrar esse mistério e contemplar essa dignidade é antes um ponto de
partida para compreender todo o nosso “modus
vivendi”, que um ponto de chegada. Este estupor antes de paralisar, aguça o
nosso ser e nos atrai para tal mistério.
O homem, nesta perspectiva é sempre um ser complexo e sempre necessitado
de um Ser que o dê significado. É alguém que domina, sempre em função de Outro
como um fim ultimo não só de si, mas de todas as coisas que manipula, e é
dominado posto que “fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração,
enquanto não repousa em ti”[7] .
Sua dignidade se mistifica, na sua origem divina e se desmistifica na sua
compreensão ontológica e relacional com o mundo.
O caminho está traçado, resta-nos caminhar ou rejeitar essa estrada, que
embora estreita, é bela justamente porque encerra nosso ser humano e nosso ser
divinizado por amor de Deus que se dá e nos interpela por uma resposta.
II.
O HOMEM E DEUS
“Por ser imagem
de Deus o individuo humano tem a dignidade de pessoa: ele não é apenas alguma
coisa, mas alguém. É capaz de conhecer-se, de possuir-se e de doar-se
livremente e entrar em comunhão com outras pessoas, e é chamado por graça a uma
aliança com seu Criador, a oferecer-lhe uma resposta de fé e de amor que
ninguém mais pode dar em seu lugar.”
(Catecismo
da Igreja Católica, n. 357)
De fato a dignidade do homem provém de um lacre na alma que o identifica
como criatura de Deus dotada de uma incrível virtude. Na consciência o homem
descobre e decifra um código segundo o qual age, mas que não é elaborada por
ele mesmo e à qual está obrigado. Tal dignidade faculta o individuo a responder
livremente aos apelos de seu coração por algo de eterno e a agir segundo esta
perspectiva constante em si.
É um movimento diabático, de convite e resposta, que envolve o homem em sua totalidade e o faz
agir de acordo com uma norma a qual não pode rejeitar e que lhe diz faça isso e
não aquilo.
2.1. O silêncio que possibilita um grito
“A consciência é
uma Lei de Nosso Espírito que ultrapassa nosso espírito, nos faz imposições,
significa a responsabilidade e dever, temor e esperança... É a mensageira
daquele que, no mundo da natureza bem como no mundo da graça nos fala através
de um véu, nos instrui e nos governa. A consciência é o primeiro de todos os
vigários de Cristo.”
(Newman)
Essa intimidade que circunda o homem o impulsiona ao bem moral,
ratificando a própria dignidade do homem. Assim, quanto mais obedece aos
ditames da reta consciência, mais o homem naturalmente se aproxima de Deus e
mais reconhece Nele seu próprio rosto, desvendando os mistérios de si e de seu
Sumamente Outro.
Contudo, para ouvir a vos de sua consciência é necessário um altíssimo
grito! O grito do “eu mesmo”, isto é, o conhecimento de si em uma escala cada
vez mais crescente. O adágio socrático “Conhece-te a ti mesmo” faz referencia
perfeita a este grito do auto conhecer-se. De fato a possibilidade que nos
proporciona a consciência é o grito de nós mesmos de nossa dignidade, vontade e
inteligência conjugada nas ações livres.
O homem diz o seu ser no que faz, isto é, no seu agir revela Deus em sua
intimidade na consciência. Tal é a implicância e exigência desta dignidade: a
retidão da consciência moral.
O Concílio, fazendo eco a Pio XII, ao afirmar que: “A consciência é o
núcleo secretíssimo e o sacrário do homem onde ele está sozinho com Deus e onde
ressoa a sua voz”[8] quer nos
propor exatamente a dignidade da consciência que precisa conhecer-se à luz de
Deus em sua intimidade única.
Assim, na busca de formular e dirigira as ações, o conhecer-se e o
conhecer a Deus são duas diretrizes que incidem na mesma consciência em vista
do bem. Não se pode de fato ignorar a consciência, uma vez que esta propõe um
agir segundo tais parâmetros.
Desta forma a dignidade do homem, só se realiza e tem sentido na ação
consciente para o bem, tanto o moral quanto o metafísico, que é proposto
naturalmente. Fazer o bem constitui o
ordinário e natural na vida do homem e é exatamente esse agir que o conforma ao
seu criador e o dignifica como criatura para o bem.
CONCLUSÃO
Nestes pequenos parágrafos nos detivemos em estabelecer o ligame entre o
Deus e o homem, enquanto criador que dota a criatura de capacidade e dignidade
para encontrá-lo em todas as coisas e, ao mesmo tempo, a transcendê-las rumo
descoberta de si, que desemboca necessariamente num agir segundo Aquele de quem
é imagem.
Depois de tantas teorias e práticas parciais de compreensão do ser do
homem apresentamos um caminho de contemplação do rosto de Deus e, por
conseguinte, do rosto do homem e, tendo chegado na contemplação de sua
dignidade, estabelecemos o agir segundo a consciência.
É evidente que não pretendíamos esgotar a questão, ao contrário, pretendíamos levantar questionamentos sobre
um caminho seguro que nos mostrasse o homem em sua dignidade e em seu agir que
a revela.
É fato que outros pontos mereceriam um olhar mais atencioso, mas que
romperia com nosso escopo: o de descobrir na dignidade e auto-conhecimento do
homem, um caminho para Deus.
BIBLIOGRAFIA
Fontes
Concilio Vaticano II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes. Petrópolis,
Vozes, 1968.
Catecismo da Igreja Católica – Edição
típica vaticana. São Paulo, Loyola, 1999.
JOÃO PAULO PP. II, Carta encíclica Veritatis Splendor. São Paulo Paulinas, 1993.
Obras consultadas
SADA, R e MONROY. Curso de Teologia Moral, 2º Edição. Lisboa, Rei dos Livros, 1992
S. AGOSTINHO. Confissões. São Paulo, Paulus,
1984.
GOMES, C. F. Riquezas da mensagem Cristã. Rio
de Janeiro, Lumem Christ, 1981.
MORA, J.F. Dicionário de Filosofia. São
Paulo, Martins Fontes, 2001.
|
[1] “O homem
é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que são enquanto
não são”
[2] 1Jo 3,2
[3] C.F.
GOMES, Riquezas da Mensagem Cristão, p.
239.
[4] Gn 2,7
[5] Nota de
D. Cirilo: H. de Lubac alude a essa escultura existente na Catedral de Chartres
em “O Drama do Humanismo Ateu”, tr., Porto, pág. 15.
[6] Riquezas da Mensagem Cristão, p. 239.
[7] S.
AGOSTINHO, Confissões, p. 15.
[8] Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n 16.
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