Achei no “rescaldo” do meu
arquivo digital da época de faculdade um trabalho apresentado sobre um tema
interessante: “Ligar e Desligar”. Não lembro bem, mas tenho a impressão de
que esse trabalho foi feito em grupo e como é de se esperar, não lembro,
tampouco, quem foi o grupo.
Espero que seja boa a leitura e
possa ajudar a compreender o tema.
Deus abençoe
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INTRODUÇÃO
Neste trabalho, de forma concisa, apresentar-nos-á os termos “ligar” e
“desligar” no seu significado bíblico e na sua compreensão e aplicação
eclesial.
Partindo, em primeiro lugar, da Escritura, dar-se-á a interpretação dos
textos que se referem a estes termos ou que sejam muito próximos destes. Após, tomando como base trechos do Catecismo Romano
e do Catecismo da Igreja Católica, passar-se-á à compreensão e aplicação
eclesial do “ligar e desligar”. Por fim, vislumbraremos, na Constituição Dogmática
sobre a Igreja, “Lúmen Gentium” do Concílio Ecumênico Vaticano II, os
supracitados termos e o que o concílio tem a dizer sobre eles.
I. TEXTOS
BÍBLICOS RELACIONADOS AOS TERMOS E SUA EXPLICAÇÃO
Abordar-se-á agora aos textos de Mt 16,19-20; 18,18 e Jo 20,19-23, pois
são os textos que tratam do assunto em questão. Haverá ainda alguma referência
a outros textos que façam algumas ressonâncias a ele.
1.1. Os textos do evangelho de
Mateus: Mt 16,19; 18,18
“A ti darei as chaves do Reino de Deus: o que ligares na terra ficará
ligado no céu; o que desligares na terra ficara desligado no céu” [1]. “Eu
vos asseguro que o que ligardes na terra ficará ligado no céu, o que desligares
na terra ficará desligado no céu” [2].
Estes dois textos, segundo Gonzalo Flórez[3],
se referem ao poder de perdoar pecados cometidos após o Batismo.
O primeiro texto, Mt 16,19 se insere na profissão de fé petrina e na
missão confiada pelo Senhor aos apóstolos, sobretudo a Pedro, chefe deste corpo
apostólico. Segundo Schoëckel, “Pedro terá as chaves de acesso ao Reino de Deus
e terá o poder de julgar, perdoar e condenar, ratificado por Deus” Tal poder é
dado também aos outros apóstolos, como fica claro no texto de Mt 18,18. [4]
Na comunidade judaica, os termos “ligar” e “desligar” se relacionam ao
poder que tinham os principais da comunidade de separar da mesma comunidade
alguns dos membros, seja por má conduta ou doutrina errônea. Primeiro, o
infrator era afastado da comunidade (ligar) depois, podia cumprir uma pena – se
arrependido – e, por fim, ser readmitido na comunidade (desligar). “Ligar” e “desligar”
eram o máximo de poder religioso dos dirigentes. Tal procedimento foi seguido
nas comunidades Judeu-Cristãs.
A Penitência vivida na Igreja nos primeiros séculos adapta-se a este modo
de entender o poder de ligar e desligar: começa afastando o pecador da comunhão
eucarística, para terminar por readmiti-lo à mesa do Senhor. [5] A
ação de ligar manifesta a ruptura da aliança com Deus por parte do pecador,
ligando-o ao domínio do diabo para que se disponha a sair desta escravidão e do
seu influxo maligno. [6]
O afastamento de um membro, por um tempo, da vida litúrgica da comunidade
e a sua posterior re-incorporação, mais que uma medida moral ou disciplinadora,
explicita a necessidade de viver em verdade e sinceridade a união com Deus e
com os irmãos. A comunhão entre os membros do Corpo de Cristo é um mistério que
deve manifestar-se na vida dos Cristãos, caso em contrário, cabe à Igreja fazer
com que seus filhos trilhem o caminho da reconciliação com Deus e com os
irmãos.
Por fim, tais textos podem ser entendidos, tendo diante dos olhos a
missão e a natureza da Igreja. O poder de “ligar” e “desligar” se refere ao
governo da Igreja em todos os seus aspectos (doutrinal, disciplinar,
caritativo, etc.) e também a sua intervenção em relação aos pecadores. Como a
Igreja pode ser entendida também através de categorias jurídicas e
disciplinares, tal interpretação também é válida. “La reconciliación de los pecadores derivaria del ejercicio de la
potestad jerárquica de la Iglesia, em
cuanto atiende a la unidad y disciplina de sus membros.”[7]
1.2. Os textos do evangelho
segundo João (Jo 10,19-23)
“Ao entardecer desse dia, o primeiro da semana, os
discípulos estavam com as portas bem fechadas, por medo dos judeus. Jesus
chegou, pôs-se no meio deles e lhes diz: ‘ – A paz esteja convosco! ’ dito isto
mostrou-lhes as mãos e os lados. Os discípulos se alegraram ao ver o Senhor.
Jesus repetiu: ‘ – A paz esteja convosco!’Como o Pai me enviou, eu vos envio’ .
Disse isso, soprou sobre eles e disse-lhes: ‘ – Recebei o Espírito Santo. A
quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados; a quem os mantiverdes, ficarão
mantidos”.
Schoëckel apresenta, na Bíblia do Peregrino, em comentário muito
elucidativo a respeito do texto:
“O poder de perdoar ou imputar pecados soa como
variante de Mt 18,18 e Mt 16,19. A expressão polar (os dois termos) pode
significar totalidade (cf. Is 22,22) o poder simbolizado pelo controle da porta
‘Eu lhe porei no ombro a chave do palácio de Davi: o que ele abrir ninguém
fechará, o que ele fechar ninguém abrirá)’ os verbos estão na passiva
teológica, ‘ficam perdoados’ (por Deus). É um poder que discerne e julga que
reconcilia ou exclui, que se dá em primeiro lugar aos discípulos, e que eles
exercerão de formas diversas (aqui entram as interpretação e explicação
posteriores): admitindo ou não o batismo; na penitência também sacramental
(embora imputar ou reter pecados não seja ato sacramental, mas sim exercício de
poder).”
A saudação do Senhor[8]
aos discípulos virá a por fim no medo humano diante do sobrenatural. A paz é
fruto da presença do Ressuscitado. O envio dos discípulos
análogo ao seu próprio envio, da parte do Pai, se relaciona com a ação do
Espírito Santo na Igreja. Jesus sopra sobre os discípulos e
lhes dá o Espírito Santo, que aparece como
dom de consolação, congregação e assistência no cumprimento da missão dos
crentes e discípulos de Jesus. “Todo lo
que precede em la discripcion de esta primera aparición de Jesús a sus discipulos
no viene sino a resaltar la importancia del ‘logion’ final: ‘A quienes
perdonéis los pecados, lês quedam perdonados; a quienes se los retengas (o
imputeis), les quedan retenidos (o imputados)[9]
O perdão dos pecados é apresentado como um poder dado por Jesus para ser
exercido na e pela Igreja e não como um mandado de anúncio. Tal poder no Novo
Testamento é uma graça fruto da redenção, presente de Cristo para a Igreja. Os
discípulos tornam-se “portadores del
perdón que El mismo ha conquistado y comunicado [10]”.
Quando Jesus diz “... a quem mantiverdes (retiverdes) ficarão mantidos
(retidos) [11]”, fica
mais explicito que ele deu aos seus discípulos poder sobre o perdão dos
pecados. O verbo reter no Novo Testamento significa sujeitar, agarrar ou
apoderar-se de alguém; no caso ele apareceu contraposto a perdoar, com o
sentido de imputar ou de reter.
Tal texto é muito próximo do texto de Mt. Pode-se dizer que, embora
provenientes de tradições diferentes, há uma interdependência entre eles que
tornará mais e melhor compreendido esse poder de ligar/ reter e desligar/
perdoar.
II. “LIGAR” E “DESLIGAR”
NO CATECISMO ROMANO E NO CATECISMO ATUAL.
Além da visão bíblica sobre os termos “ligar” e “desligar” e a sua
compreensão na Igreja, agora, passa-se a tratar desses termos e seus
respectivos significados para a Igreja enquanto são apresentados pelos
catecismos, seja o Catecismo Romano (pós-concílio tridentino) seja o Catecismo
da Igreja Católica (pós-concílio Vaticano II). Tal abordagem permitirá uma
compreensão pastoral acerca do assunto em questão.
2.1. “Ligar” e “desligar” no
Catecismo Romano
No Catecismo Romano, os termos “ligar” e “desligar” encontram-se na
segunda parte, que trata dos sacramentos, no capítulo quinto, destinado ao
sacramento da Penitência, no parágrafo onze. O fato de os termos situarem-se no
tratado dos sacramentos, em especial o da penitência, mostra a compreensão da
Igreja, sobretudo (e não exclusivamente) no contexto da absolvição ou não dos
pecados. Diz o Catecismo Romano:
“... nos atos e palavras do sacerdote reconhecemos a misericórdia de
Deus, que perdoa esses pecados. Isto é, que provam, absolutamente a palavra do
Salvador: ‘Eu te darei as chaves do Reino dos céus... Tudo o que desligares na
terra, será desligado também no céu’”[12]
Portanto, a Igreja consolida-se, após Trento, na compreensão e na
vivência do sacramento da Penitência como a atualização e realização eclesial
das palavras do Senhor a Pedro. A interpretação de Mt 16,19 e 18,18 juntamente
com a de Jo 10, 19-23 fundamenta o sacramento da Penitência e o seu caráter de
“reunir” o pecador a Deus e à Igreja ou de mantê-lo desunido deles caso não os
procure ou os procure sem arrependimento necessário.
O atual catecismo apresenta os termos, ou o tema do poder dito “das
chaves” em dois momentos diferentes: O primeiro, na primeira parte – a
profissão de fé Cristã: o Capítulo III – Creio no Espírito Santo; Artigo X – creio
no perdão dos pecados; item II – o Poder das Chaves. O segundo momento, na
Segunda Parte – A celebração do mistério Cristão; Segunda Seção – Os sete
sacramentos da Igreja; No capítulo II – Os sacramentos de cura; no Artigo IV – O
sacramento da Penitência e da Reconciliação; item VI – O sacramento da penitência
e da reconciliação.
Nessas duas ocorrências, quer “ligar” e “desligar”, quer “o poder das
Chaves”, estão inseridos no horizonte do perdão dos pecados e da reconciliação
do Cristão pecador com Deus e com a Igreja. Em primeiro lugar, enfatiza-se o
Cristo que confere aos apóstolos um poder e uma missão de perdoar os pecados:
“Depois da ressurreição, Cristo enviou seus Apóstolos
para anunciar a todas as nações o arrependimento em seu Nome em vista da
remissão dos pecados (Lc 24, 47). Este ‘ministério da reconciliação’ (2Cor
5,18), os Apóstolos e seus sucessores não o exercem somente anunciando aos
homens o perdão de Deus merecido para nós por Cristo e chamando-os à conversão
e à fé, mas também comunicando-lhes a remissão dos pecados pelo Batismo e reconciliando-os
com Deus e com a Igreja graças ao poder das chaves recebido de Cristo.” [13]
Depois se acentua mais a dimensão eclesial desse perdão:
“Conferindo aos Apóstolos seu próprio poder de perdoar
os pecados, o Senhor também lhes dá a autoridade de reconciliar os pecadores
com a Igreja. Esta dimensão eclesial de sua tarefa exprime-se principalmente no
solene palavra de Cristo a Simão Pedro: ‘Eu te darei as chaves do Reino dos
céus, e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra
será desligado nos céus’ (Mt 16,19)...
As palavras “ligar” e “desligar” significam: aquele
que excluirdes da nossa comunhão, será excluído da comunhão com Deus; aquele
que receberdes de novo à nossa comunhão, Deus o acolherá também na sua. A
reconciliação com a Igreja é inseparável da reconciliação com Deus” [14]
Estes dois textos, que dispensam comentários, deixam claro, portanto que
a Igreja encara quer o “poder das Chaves”, quer o poder de “ligar” e “desligar”
como dons de Cristo para os seus com o fim de edificar a Igreja através do
perdão dos pecados, readmitindo os fieis na comunhão com a comunidade e com
Deus mesmo.
A Constituição Dogmática sobre a Igreja, do Concílio Vaticano II; ao
tratar da ordem dos bispos e da sua participação no magistério e no regime
pastoral dos Apóstolos, e união com o sucessor de Pedro; acaba por tocar o tema
do “poder das chaves” e dos termos “ligar” e “desligar”.
“...a Ordem dos Bispos, que sucede ao colégio
apostólico no magistério e no regime pastoral, e na qual perdura continuamente
o corpo apostólico em união com a sua cabeça, o Romano Pontífice, e nunca sem
ele, é também detentora do poder supremo e pleno sobre a Igreja universal, mas
este poder não pode ser exercido senão com o consentimento do Pontífice Romano.
Só a Pedro o Senhor pôs como rocha e portador das chaves da Igreja (cf. Mt
16,18s) e constituiu pastor de toda a sua grei (cf. Jo 21,15ss); mas o oficio
que deu a Pedro de ligar e desligar (cf. Mt 16,19), é sabido que o deu também
ao colégio dos apóstolos, unido com sua cabeça (cf. Mt 18,18;28,16-20).[15]
O Concílio afirma que as “chaves” foram confiadas a Pedro, isto é, que o
papa é o detentor do poder pleno e supremo sobre a Igreja. As “chaves”, aqui,
são lidas como autoridade máxima, submetida à Palavra, sobre toda a Igreja. O
oficio dado a Pedro de “ligar” e “desligar” também é lido como autoridade e
pastoreio sobre toda a Igreja; mas sobre este ofício é dito que também foi
confiado aos demais apóstolos e, assim, também aos bispos, com a condição da
comunhão com o papa, cabeça do colégio episcopal.
Aqui, os termos “ligar” e “desligar,” são empregados, não negando seu
sentido de exclusão e re-inclusão na comunhão, ou aquele de perdoar ou reter os
pecados, mas no sentido mais amplo que tem o ministério
dos apóstolos na Igreja. Os poderes de excluir e de re-incluir na
comunhão e de perdoar ou de reter os pecados estão contidos naquele mais amplo,
confiado pelo Senhor aos seus apóstolos e aos seus sucessores.
“Ligar” e “desligar”, na LG 22, indicam, pois, o poder ou a capacidade
dos apóstolos e dos seus sucessores, de administrar na terra os bens do céu e
de agir na terra em nome Daquele que está no céu. Os sucessores dos apóstolos
são assistidos e confirmados em seu pastoreio, ensino e santificação do povo de
Deus pelo próprio Deus, desde que o façam em comunhão com o sucessor de Pedro,
inclusive no que concerne ao sacramento da Penitência.
Portanto, “ligar” e “desligar” aparecem no Concílio Vaticano II
indicando, sem excluir o seu sentido para o sacramento da penitência, a
autoridade e o poder apostólico do papa e dos bispos (autoridade, poder,
concedidos a eles, por Deus, em Cristo, no Espírito Santo, através da sucessão
apostólica) para o serviço de santificação, ensino e pastoreio do povo de Deus.
CONCLUSÃO
Ao fim deste trabalho, fica
patente que os termos “ligar” e “desligar”, contidos em Mt 16, 19 e em Mt 18,
18 podem ser interpretados basicamente de duas formas:
A primeira interpreta os
supracitados termos referindo-os a Jo 20, 23, ao perdão e à retenção dos
pecados, poder que o Ressuscitado dá aos doze e que é paralelo ao significado
de “ligar” e “desligar”, pois esses termos se referiam à exclusão e re-inclusão
de membros das comunidades judaicas que tivessem cometido alguma falta grave.
Essa primeira interpretação ligou os termos em questão ao contexto penitencial,
pois eles provêm daí, e à prática da penitência, consolidando-se, por fim, na
Confissão sacramental com absolvição dos pecados. Os Santos Padres e a tradição
catequética e doutrinal da Igreja reforçam essa via de compreensão.
A segunda, interpreta “ligar”
e “desligar” no contexto do poder de governo dado pelo Senhor a Pedro em Mt
16,18 e as Doze em Mt 18,18. Tal interpretação enfoca o carisma que os
apóstolos presididos por Pedro receberam para ensinar a verdadeira doutrina,
santificar o povo e guiá-lo para a salvação; poder que foi transmitido aos
bispos e ao papa. Eles, com seu ministério agem em nome e com o poder de Deus
para o bem da Igreja e Deus possibilita e confirma tal ministério: o que é
ligado na terra é ligado no céu.
Essas duas interpretações não se contrapõem, mas se completam. De fato, a
administração do sacramento da penitência e o perdão dos pecados próprio deste
sacramento são realidades incluídas naquela maior e mais ampla do ministério
dos bispos e do papa e de sua mediação para a Igreja.
[1] Mt
16,19.
[2] Mt
18,18.
[3] G.
FLÓREZ, Penitencia y unción de enfermos,
Madrid, 2001, p. 66.
[4] A Bíblia
do Peregrino, São Paulo, 2002. Comentário ao texto de Mt 18,18.
[5] Ibidem, p 67.
[6] Ibid, p.70.
[7] Ibid, pp. 71-72.
[11] Jo
20,23.
[12]
CATECISMO ROMANO, Petrópolis, (sem data) p. 318.
[13]
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, Petrópolis, 1993, n. 981
[14] Ibid, nn. 1444-45.
[15]
CONCÍLIO VATICANO II, Constituição
Dogmática “Lumen Gentium”,
Petrópolis, 1968 n. 22.
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