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sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Ligar e Desligar



Achei no “rescaldo” do meu arquivo digital da época de faculdade um trabalho apresentado sobre um tema interessante: “Ligar e Desligar”. Não lembro bem, mas tenho a impressão de que esse trabalho foi feito em grupo e como é de se esperar, não lembro, tampouco, quem foi o grupo.
Espero que seja boa a leitura e possa ajudar a compreender o tema.

Deus abençoe



INTRODUÇÃO

Neste trabalho, de forma concisa, apresentar-nos-á os termos “ligar” e “desligar” no seu significado bíblico e na sua compreensão e aplicação eclesial.

Partindo, em primeiro lugar, da Escritura, dar-se-á a interpretação dos textos que se referem a estes termos ou que sejam muito próximos destes. Após, tomando como base trechos do Catecismo Romano e do Catecismo da Igreja Católica, passar-se-á à compreensão e aplicação eclesial do “ligar e desligar”. Por fim, vislumbraremos, na Constituição Dogmática sobre a Igreja, “Lúmen Gentium” do Concílio Ecumênico Vaticano II, os supracitados termos e o que o concílio tem a dizer sobre eles.

I. TEXTOS BÍBLICOS RELACIONADOS AOS TERMOS E SUA EXPLICAÇÃO

Abordar-se-á agora aos textos de Mt 16,19-20; 18,18 e Jo 20,19-23, pois são os textos que tratam do assunto em questão. Haverá ainda alguma referência a outros textos que façam algumas ressonâncias a ele.

1.1. Os textos do evangelho de Mateus: Mt 16,19; 18,18

“A ti darei as chaves do Reino de Deus: o que ligares na terra ficará ligado no céu; o que desligares na terra ficara desligado no céu” [1]. “Eu vos asseguro que o que ligardes na terra ficará ligado no céu, o que desligares na terra ficará desligado no céu” [2].

Estes dois textos, segundo Gonzalo Flórez[3], se referem ao poder de perdoar pecados cometidos após o Batismo.

O primeiro texto, Mt 16,19 se insere na profissão de fé petrina e na missão confiada pelo Senhor aos apóstolos, sobretudo a Pedro, chefe deste corpo apostólico. Segundo Schoëckel, “Pedro terá as chaves de acesso ao Reino de Deus e terá o poder de julgar, perdoar e condenar, ratificado por Deus” Tal poder é dado também aos outros apóstolos, como fica claro no texto de Mt 18,18. [4]

Na comunidade judaica, os termos “ligar” e “desligar” se relacionam ao poder que tinham os principais da comunidade de separar da mesma comunidade alguns dos membros, seja por má conduta ou doutrina errônea. Primeiro, o infrator era afastado da comunidade (ligar) depois, podia cumprir uma pena – se arrependido – e, por fim, ser readmitido na comunidade (desligar). “Ligar” e “desligar” eram o máximo de poder religioso dos dirigentes. Tal procedimento foi seguido nas comunidades Judeu-Cristãs.

A Penitência vivida na Igreja nos primeiros séculos adapta-se a este modo de entender o poder de ligar e desligar: começa afastando o pecador da comunhão eucarística, para terminar por readmiti-lo à mesa do Senhor. [5] A ação de ligar manifesta a ruptura da aliança com Deus por parte do pecador, ligando-o ao domínio do diabo para que se disponha a sair desta escravidão e do seu influxo maligno. [6]

O afastamento de um membro, por um tempo, da vida litúrgica da comunidade e a sua posterior re-incorporação, mais que uma medida moral ou disciplinadora, explicita a necessidade de viver em verdade e sinceridade a união com Deus e com os irmãos. A comunhão entre os membros do Corpo de Cristo é um mistério que deve manifestar-se na vida dos Cristãos, caso em contrário, cabe à Igreja fazer com que seus filhos trilhem o caminho da reconciliação com Deus e com os irmãos.

Por fim, tais textos podem ser entendidos, tendo diante dos olhos a missão e a natureza da Igreja. O poder de “ligar” e “desligar” se refere ao governo da Igreja em todos os seus aspectos (doutrinal, disciplinar, caritativo, etc.) e também a sua intervenção em relação aos pecadores. Como a Igreja pode ser entendida também através de categorias jurídicas e disciplinares, tal interpretação também é válida. “La reconciliación de los pecadores derivaria del ejercicio de la potestad jerárquica  de la Iglesia, em cuanto atiende a la unidad y disciplina de sus membros.[7]

1.2. Os textos do evangelho segundo João (Jo 10,19-23)

“Ao entardecer desse dia, o primeiro da semana, os discípulos estavam com as portas bem fechadas, por medo dos judeus. Jesus chegou, pôs-se no meio deles e lhes diz: ‘ – A paz esteja convosco! ’ dito isto mostrou-lhes as mãos e os lados. Os discípulos se alegraram ao ver o Senhor. Jesus repetiu: ‘ – A paz esteja convosco!’Como o Pai me enviou, eu vos envio’ . Disse isso, soprou sobre eles e disse-lhes: ‘ – Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados; a quem os mantiverdes, ficarão mantidos”.

Schoëckel apresenta, na Bíblia do Peregrino, em comentário muito elucidativo a respeito do texto:

“O poder de perdoar ou imputar pecados soa como variante de Mt 18,18 e Mt 16,19. A expressão polar (os dois termos) pode significar totalidade (cf. Is 22,22) o poder simbolizado pelo controle da porta ‘Eu lhe porei no ombro a chave do palácio de Davi: o que ele abrir ninguém fechará, o que ele fechar ninguém abrirá)’ os verbos estão na passiva teológica, ‘ficam perdoados’ (por Deus). É um poder que discerne e julga que reconcilia ou exclui, que se dá em primeiro lugar aos discípulos, e que eles exercerão de formas diversas (aqui entram as interpretação e explicação posteriores): admitindo ou não o batismo; na penitência também sacramental (embora imputar ou reter pecados não seja ato sacramental, mas sim exercício de poder).”

A saudação do Senhor[8] aos discípulos virá a por fim no medo humano diante do sobrenatural. A paz é fruto da presença do Ressuscitado. O envio dos discípulos análogo ao seu próprio envio, da parte do Pai, se relaciona com a ação do Espírito Santo na Igreja. Jesus sopra sobre os discípulos e lhes o Espírito Santo, que aparece como dom de consolação, congregação e assistência no cumprimento da missão dos crentes e discípulos de Jesus. “Todo lo que precede em la discripcion de esta primera aparición de Jesús a sus discipulos no viene sino a resaltar la importancia del ‘logion’ final: ‘A quienes perdonéis los pecados, lês quedam perdonados; a quienes se los retengas (o imputeis), les quedan retenidos (o imputados)[9]

O perdão dos pecados é apresentado como um poder dado por Jesus para ser exercido na e pela Igreja e não como um mandado de anúncio. Tal poder no Novo Testamento é uma graça fruto da redenção, presente de Cristo para a Igreja. Os discípulos tornam-se “portadores del perdón que El mismo ha conquistado y comunicado [10]”.

Quando Jesus diz “... a quem mantiverdes (retiverdes) ficarão mantidos (retidos) [11]”, fica mais explicito que ele deu aos seus discípulos poder sobre o perdão dos pecados. O verbo reter no Novo Testamento significa sujeitar, agarrar ou apoderar-se de alguém; no caso ele apareceu contraposto a perdoar, com o sentido de imputar ou de reter.
Tal texto é muito próximo do texto de Mt. Pode-se dizer que, embora provenientes de tradições diferentes, há uma interdependência entre eles que tornará mais e melhor compreendido esse poder de ligar/ reter e desligar/ perdoar.

II. “LIGAR” E “DESLIGAR” NO CATECISMO ROMANO E NO CATECISMO ATUAL.

Além da visão bíblica sobre os termos “ligar” e “desligar” e a sua compreensão na Igreja, agora, passa-se a tratar desses termos e seus respectivos significados para a Igreja enquanto são apresentados pelos catecismos, seja o Catecismo Romano (pós-concílio tridentino) seja o Catecismo da Igreja Católica (pós-concílio Vaticano II). Tal abordagem permitirá uma compreensão pastoral acerca do assunto em questão.

2.1. “Ligar” e “desligar” no Catecismo Romano

No Catecismo Romano, os termos “ligar” e “desligar” encontram-se na segunda parte, que trata dos sacramentos, no capítulo quinto, destinado ao sacramento da Penitência, no parágrafo onze. O fato de os termos situarem-se no tratado dos sacramentos, em especial o da penitência, mostra a compreensão da Igreja, sobretudo (e não exclusivamente) no contexto da absolvição ou não dos pecados. Diz o Catecismo Romano:

“... nos atos e palavras do sacerdote reconhecemos a misericórdia de Deus, que perdoa esses pecados. Isto é, que provam, absolutamente a palavra do Salvador: ‘Eu te darei as chaves do Reino dos céus... Tudo o que desligares na terra, será desligado também no céu’”[12]

Portanto, a Igreja consolida-se, após Trento, na compreensão e na vivência do sacramento da Penitência como a atualização e realização eclesial das palavras do Senhor a Pedro. A interpretação de Mt 16,19 e 18,18 juntamente com a de Jo 10, 19-23 fundamenta o sacramento da Penitência e o seu caráter de “reunir” o pecador a Deus e à Igreja ou de mantê-lo desunido deles caso não os procure ou os procure sem arrependimento necessário.

 2.2. “Ligar” e “desligar” no catecismo da Igreja Católica

O atual catecismo apresenta os termos, ou o tema do poder dito “das chaves” em dois momentos diferentes: O primeiro, na primeira parte – a profissão de fé Cristã: o Capítulo III – Creio no Espírito Santo; Artigo X – creio no perdão dos pecados; item II – o Poder das Chaves. O segundo momento, na Segunda Parte – A celebração do mistério Cristão; Segunda Seção – Os sete sacramentos da Igreja; No capítulo II – Os sacramentos de cura; no Artigo IV – O sacramento da Penitência e da Reconciliação; item VI – O sacramento da penitência e da reconciliação.

Nessas duas ocorrências, quer “ligar” e “desligar”, quer “o poder das Chaves”, estão inseridos no horizonte do perdão dos pecados e da reconciliação do Cristão pecador com Deus e com a Igreja. Em primeiro lugar, enfatiza-se o Cristo que confere aos apóstolos um poder e uma missão de perdoar os pecados:

“Depois da ressurreição, Cristo enviou seus Apóstolos para anunciar a todas as nações o arrependimento em seu Nome em vista da remissão dos pecados (Lc 24, 47). Este ‘ministério da reconciliação’ (2Cor 5,18), os Apóstolos e seus sucessores não o exercem somente anunciando aos homens o perdão de Deus merecido para nós por Cristo e chamando-os à conversão e à fé, mas também comunicando-lhes a remissão dos pecados pelo Batismo e reconciliando-os com Deus e com a Igreja graças ao poder das chaves recebido de Cristo.” [13]

Depois se acentua mais a dimensão eclesial desse perdão:

“Conferindo aos Apóstolos seu próprio poder de perdoar os pecados, o Senhor também lhes dá a autoridade de reconciliar os pecadores com a Igreja. Esta dimensão eclesial de sua tarefa exprime-se principalmente no solene palavra de Cristo a Simão Pedro: ‘Eu te darei as chaves do Reino dos céus, e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será desligado nos céus’ (Mt 16,19)...
As palavras “ligar” e “desligar” significam: aquele que excluirdes da nossa comunhão, será excluído da comunhão com Deus; aquele que receberdes de novo à nossa comunhão, Deus o acolherá também na sua. A reconciliação com a Igreja é inseparável da reconciliação com Deus” [14]

Estes dois textos, que dispensam comentários, deixam claro, portanto que a Igreja encara quer o “poder das Chaves”, quer o poder de “ligar” e “desligar” como dons de Cristo para os seus com o fim de edificar a Igreja através do perdão dos pecados, readmitindo os fieis na comunhão com a comunidade e com Deus mesmo.
  
 III. “LIGAR” E “DESLIGAR” NA LG 22

A Constituição Dogmática sobre a Igreja, do Concílio Vaticano II; ao tratar da ordem dos bispos e da sua participação no magistério e no regime pastoral dos Apóstolos, e união com o sucessor de Pedro; acaba por tocar o tema do “poder das chaves” e dos termos “ligar” e “desligar”.

“...a Ordem dos Bispos, que sucede ao colégio apostólico no magistério e no regime pastoral, e na qual perdura continuamente o corpo apostólico em união com a sua cabeça, o Romano Pontífice, e nunca sem ele, é também detentora do poder supremo e pleno sobre a Igreja universal, mas este poder não pode ser exercido senão com o consentimento do Pontífice Romano. Só a Pedro o Senhor pôs como rocha e portador das chaves da Igreja (cf. Mt 16,18s) e constituiu pastor de toda a sua grei (cf. Jo 21,15ss); mas o oficio que deu a Pedro de ligar e desligar (cf. Mt 16,19), é sabido que o deu também ao colégio dos apóstolos, unido com sua cabeça (cf. Mt 18,18;28,16-20).[15]

O Concílio afirma que as “chaves” foram confiadas a Pedro, isto é, que o papa é o detentor do poder pleno e supremo sobre a Igreja. As “chaves”, aqui, são lidas como autoridade máxima, submetida à Palavra, sobre toda a Igreja. O oficio dado a Pedro de “ligar” e “desligar” também é lido como autoridade e pastoreio sobre toda a Igreja; mas sobre este ofício é dito que também foi confiado aos demais apóstolos e, assim, também aos bispos, com a condição da comunhão com o papa, cabeça do colégio episcopal.

Aqui, os termos “ligar” e “desligar,” são empregados, não negando seu sentido de exclusão e re-inclusão na comunhão, ou aquele de perdoar ou reter os pecados, mas no sentido mais amplo que tem o ministério dos apóstolos na Igreja. Os poderes de excluir e de re-incluir na comunhão e de perdoar ou de reter os pecados estão contidos naquele mais amplo, confiado pelo Senhor aos seus apóstolos e aos seus sucessores.

“Ligar” e “desligar”, na LG 22, indicam, pois, o poder ou a capacidade dos apóstolos e dos seus sucessores, de administrar na terra os bens do céu e de agir na terra em nome Daquele que está no céu. Os sucessores dos apóstolos são assistidos e confirmados em seu pastoreio, ensino e santificação do povo de Deus pelo próprio Deus, desde que o façam em comunhão com o sucessor de Pedro, inclusive no que concerne ao sacramento da Penitência.

Portanto, “ligar” e “desligar” aparecem no Concílio Vaticano II indicando, sem excluir o seu sentido para o sacramento da penitência, a autoridade e o poder apostólico do papa e dos bispos (autoridade, poder, concedidos a eles, por Deus, em Cristo, no Espírito Santo, através da sucessão apostólica) para o serviço de santificação, ensino e pastoreio do povo de Deus.

CONCLUSÃO

      Ao fim deste trabalho, fica patente que os termos “ligar” e “desligar”, contidos em Mt 16, 19 e em Mt 18, 18 podem ser interpretados basicamente de duas formas:

      A primeira interpreta os supracitados termos referindo-os a Jo 20, 23, ao perdão e à retenção dos pecados, poder que o Ressuscitado dá aos doze e que é paralelo ao significado de “ligar” e “desligar”, pois esses termos se referiam à exclusão e re-inclusão de membros das comunidades judaicas que tivessem cometido alguma falta grave. Essa primeira interpretação ligou os termos em questão ao contexto penitencial, pois eles provêm daí, e à prática da penitência, consolidando-se, por fim, na Confissão sacramental com absolvição dos pecados. Os Santos Padres e a tradição catequética e doutrinal da Igreja reforçam essa via de compreensão.

      A segunda, interpreta “ligar” e “desligar” no contexto do poder de governo dado pelo Senhor a Pedro em Mt 16,18 e as Doze em Mt 18,18. Tal interpretação enfoca o carisma que os apóstolos presididos por Pedro receberam para ensinar a verdadeira doutrina, santificar o povo e guiá-lo para a salvação; poder que foi transmitido aos bispos e ao papa. Eles, com seu ministério agem em nome e com o poder de Deus para o bem da Igreja e Deus possibilita e confirma tal ministério: o que é ligado na terra é ligado no céu.

Essas duas interpretações não se contrapõem, mas se completam. De fato, a administração do sacramento da penitência e o perdão dos pecados próprio deste sacramento são realidades incluídas naquela maior e mais ampla do ministério dos bispos e do papa e de sua mediação para a Igreja.

Portanto, “ligar” e “desligar” são termos que se referem à mediação das realidades salvíficas de Cristo para a Igreja, no ministério dos bispos, sucessores dos apóstolos unidos ao papa; sendo também referentes ao perdão dos pecados, que é parte desta mediação salvífica e expressão mais eloqüente dela. 


[1] Mt 16,19.
[2] Mt 18,18.
[3] G. FLÓREZ, Penitencia y unción de enfermos, Madrid, 2001, p. 66.
[4] A Bíblia do Peregrino, São Paulo, 2002. Comentário ao texto de Mt 18,18.
[5] Ibidem, p 67.
[6] Ibid, p.70.
[7] Ibid, pp. 71-72.
[8] Ibid. p.73.
[9] Ibid, p. 74.
[10] Ibid, p. 75
[11] Jo 20,23.
[12] CATECISMO ROMANO, Petrópolis, (sem data) p. 318.
[13] CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, Petrópolis, 1993, n. 981
[14] Ibid, nn. 1444-45.
[15] CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Dogmática Lumen Gentium”, Petrópolis, 1968  n. 22.

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