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sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A LITURGIA CRISTÃ AJOELHA-SE DIANTE DO SENHOR CRUCIFICADO E ELEVADO!


Deparo-me agora com um artigo[1] publicado pelo Niterói Católico, órgão oficial de informação da Arquidiocese de Niterói/RJ, que parece não corresponder exatamente àquilo que é a orientação da Igreja.
Sob o título “Ajoelhar-se ou ficar de pé? Eis a questão”, encontra-se uma enxurrada de informações que carece de algum aprofundamento e, não menos de fundamentação. Para nos colocar à par do conteúdo do texto, passamos a um rápido resumo:
O centro do debate é a posição da assembleia durante a Anáfora: se deve permanecer de pé ou ajoelhada, como é costume em nossas celebrações. Necessitamos de clareza inicial sobre o status quo do debate que o autor deseja trazer à peito. Analisemos:
“O ajoelhar-se durante a prece Eucarística, é um dos temas que tem gerado muitas discussões. Pode-se dizer que isso é reflexo de mais de mil anos de uma fé devocionista que nos distanciou da prática ritual-celebrativa da Igreja primitiva. E Hoje após quase cinquenta anos do Concílio Ecumênico Vaticano II, que propôs a volta às fontes, colhemos os resquícios desse período”.

Podemos perguntar o que é reflexo de mais de mil anos de uma fé devocionista: as muitas discussões ou o ajoelhar-se durante a prece eucarística? Se o problema é o desenvolvimento do debate litúrgico, devemos tomar um viés para análise do tema, mas se é o gesto de ajoelhar-se, em si, cabe outro tipo de reflexão. Vamos tentar responder a ambos os pontos.
Um renomado teólogo, ao nos introduzir no espírito da liturgia, dedica sete páginas de sua obra somente sobre esse assunto. É claro que facilmente poder-se-ia refutar o argumento com base no fato de o autor não ser latino-americano e, por isso, não entender a “inculturação” da liturgia no Brasil. Contudo, não obstante à nacionalidade germânica, não devemos deixar de estar atentos à palavra de Joseph Ratzinger[2] em seu livro “Introdução ao espírito da liturgia” [3].
Analisando a “história do gesto de ajoelhar”, passa em revista a recusa dos Romanos e Gregos, sob o argumento de que “ajoelhar-se não seria digno do homem livre nem condiria com a cultura grega, sendo assunto de bárbaros” [4] e dá voz à negativa de Agostinho de ajoelhar-se diante de falsos deuses.
Explica o autor: “Olhando a história podemos constatar que tanto os Gregos como os Romanos rejeitavam a posição de joelhos. Perante os deuses parciais e desunidos... tal comportamento tinha plena justificação: para estes povos, era por demais evidente que esses deuses não eram Deus, mesmo dependendo do seu poder caprichoso e tendo sido obrigados a assegurar-se, quando possível de sua benevolência (...) Agostinho dá-lhe [à Aristóteles], de certo modo, razão: as divindades falsas seriam apenas máscaras de demônios, que sujeitam o Homem à adoração do dinheiro e ao egocentrismo, tornando-o deste modo, servil e supersticioso” [5].
Remarca ainda que o gesto de ajoelhar-se se origina na própria Sagrada Escritura, já que a palavra proskynein[6] aparece 59 só no Novo Testamento. Ajoelhar-se, segundo Ratzinger, tem para o Antigo Testamento, o sentido de rebaixar as forças diante de Deus como forma de reconhecimento de seu poder que origina tudo o que temos[7], uma forma clara de adoração.
Nos Atos dos Apóstolos, falam-se da oração de São Pedro (9,40), de São Paulo (20,36) e de toda a comunidade Cristã (21,5) em posição de joelhos.
Fica provado assim que o argumento de que os primeiros cristãos partiam o pão, nas casas (domus ecclesia), celebravam nas catacumbas, se reuniam ao redor da mesa e que, por não haver bancos ou genuflexórios nestes lugares, todos ficavam de pé, ao redor do centro, do altar, resulta em inválido, por não corresponder aos referentes bíblicos.
Se o argumento fosse válido, a fortiori ratione, deveríamos ter que retirar o altar, os bancos, o sacrário, os retábulos, o ambão e outras coisas... E para reduzir ao absurdo, creio que se devemos propor uma volta naqueles termos, por que não usarmos o mesmo estilo de roupas que os primeiros cristãos?
Se a palavra do teólogo Joseph Ratzinger não nos servir de posição abalizada, ao menos nos sirvam as palavras da Exortação Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis[8] de Sua Santidade Bento XVI. O documento agora mencionado trata, no número 65 da reverência à Eucaristia e assim se expressa:

Penso, em geral, na importância dos gestos e posições, como, por exemplo, ajoelhar-se durante os momentos salientes da Oração Eucarística. Embora adaptando-se à legítima variedade de sinais que tem lugar no contexto das diferentes culturas, cada um viva e exprima a consciência de encontrar-se, em cada celebração, diante da majestade infinita de Deus, que chega até nós humildemente nos sinais sacramentais.”[9]

Quais mais palavras deveriam ser ditas para indicar a importância do ajoelhar na Consagração durante a Oração Eucarística. Se houve algum questionamento no pensamento do autor do artigo quanto a melhor atitude de exprimir o que celebramos, os documentos recentes da Igreja o dirimem logo nas primeiras olhadelas.
Outra tensão que não ficou bem clara naquele artigo foi a que existe entre “o Banquete” e “o Sacrifício”. Não raro, esse tema causa alguma dificuldade. Devemos lembrar que a palavra “Católica” significa universal e açambarca o sentido de totalidade de modo que não se pode partir de uma escolha entre uma das partes, mas do todo[10].
Se de um lado é verdade que o banquete da alegria é um aspecto da missa, também é verdade que o sacrifício também o é. Isso nos faz compreender o Apocalipse de São João que nos mostra a liturgia celeste onde, no altar do sacrifício está o Cordeiro imolado e de pé[11]! Entre lágrimas copiosas por não haver quem abrisse o livro da história, João é chamado a alegrar-se porque vencera o Leão de Judá que poderá abrir o livro.
Essa mística penitencial e festiva é expressa no próprio andamento das partes da missa que, no ato penitencial nos convida a reclusão e no Glória nos convida à alegria. Respeitar esses momentos é imprescindível para uma celebração frutuosa da liturgia [12].
Parte desta tensão é também a realidade mística da missa que transcende o tempo. No entanto isso não significaria dizer exatamente que estamos no céu. É óbvio que não estamos no céu, por que se assim fosse não o deixaríamos mais. Vale a pena lembrar a expressão advinda da escatologia que remarca aquela tensão de que faláramos: “já, mas ainda não”.
Diante de tudo isso, vale a pena perguntar: Qual o sentido do ajoelhar-se na celebração Eucarística[13]?
É duplo o significado. Em primeiro lugar o de súplica, pequenez. O homem reconhece sua condição criatural e a condição Divina de Deus. Ajoelha-se diante de Deus como um pequenino que d’Ele tudo deseja e espera receber. Ao mesmo tempo, de adoração por que aquele Deus de quem ele recebe tudo, é também o Deus sumamente bom que “trabalha” muito mais pela salvação do homem que o próprio homem.

Existem algumas coisas que merecem relevo:

1)    Dentre os cânones do Concílio de Nicéia[14] (325), é bem verdade, há a recomendação de que, nos dias do Senhor em Pentecostes, todos devem rezar de pé e não ajoelhados. Mas daí a dizer que há uma proibição, não se sustenta. As pessoas não ajoelhavam no domingo por uma questão penitencial (no domingo não se fazia penitência), mas, no segundo milênio a Igreja trouxe de volta o aspecto de adoração e reverência diante da majestade divina que, como vimos, já era usual no ambiente neo-testamentário.
2)    Nós não podemos escolher a postura que devemos tomar na liturgia sob pena de um relativismo litúrgico. As prescrições litúrgicas da Instrução Geral ao Missal Romano dizem:

“A posição comum do corpo, que todos os participantes devem observar é sinal da comunidade e da unidade da assembleia, pois exprime e estimula os sentimentos e pensamentos dos participantes” [15]

3)    As dimensões da teologia do múnus sacerdotal, que entre o padre e os demais fiéis é complementar, mas distinto, fica evidenciado uma vez que, na Oração Eucarística, o padre está exercendo seu múnus sacerdotal ministerial enquanto os demais fiéis o fazem mediatizados pelo padre.
4)    A mesma Instrução Geral diz: “Ajoelhem-se durante a Consagração, a não ser que a falta de espaço, ou o grande número de presentes ou outras causas razoáveis não o permitam”[16], não deixando margem nenhuma para uma escolha por parte do fiel (usa o verbo “ajoelhar” no imperativo) e coloca como exceção bem definida o fato de não se ajoelhar.
5)    O fato de não haver uma codificação da genuflexão nas normativas antigas não significa, nós bem o sabemos, que não era prática entre os cristãos. A guisa de exemplo, podemos ver muitas situações em que o uso precedeu à normativa (a Assunção de Maria é um bom exemplo).

Uma ultima palavra:

Nossa intenção, ao responder aquele artigo publicado no Órgão oficial da Arquidiocese de Niterói é simples e reside em dois motivos:
A palavra grega σκοπεύω[17], de onde vem a palavra “Epíscopo”, significa “ver”. Daí ser um dos ofícios do padre, como colaborador do Bispo, ajuda-lo a ver aquilo que pode levar à comunidade ao erro.
Depois, uma grande parte de nossos leigos tem acesso ao Niterói Católico e, por ser um órgão oficial, deve ser sempre teologicamente revisado e não pode conter, de modo algum, quaisquer imprecisões que causem confusão às pessoas que são sinceras, mas desavisadamente leem os artigos lá constantes.
Ainda é necessário ressaltar que devemos sempre zelar pela reta doutrina e disciplina e que reflexões que sejam dissonantes do que nos ensinam os livros litúrgicos e os documentos magisteriais devem ser evitados, como nós mesmos afirmamos quando fazemos nossa profissão de fé, que por ocasião da Sagrada Ordenação, que no ato da posse canônica.

Visamos esclarecer as imprecisões relativas ao gesto reverente de genufletir bem como o debate sobre seu uso. Percorremos a sadia teologia de Ratzinger e o magistério da Igreja, principalmente as expressões da Instrução Geral ao Missal Romano, e a tradição para chegarmos a conclusão de que é legitimo e obrigatório ajoelhar-se durante a Anáfora não só por respeito às rubricas contidas nos livros litúrgicos, mas, sobretudo, por reverente reconhecimento de nossa pequenez e adoração diante de Deus.



[1] Fróes, Pe. Marcelo. “Ajoelhar-se ou ficar de Pé? Eis, a questão!” in Niterói Católico, outubro de 2011. Ano 48, n. 548, p. 9.
[2] A respeito do autor, podemos dizer que embora a obra que se citará não seja um documento pontifício e não tenha força da autoridade magisterial, podemos afirmar com certeza que, por sua própria personalidade, Joseph Ratzinger constitui uma voz extremamente abalizada por ter sido perito do Concílio Vaticano II, de modo que seu pensamento, de certo modo, é uma voz que ressoa das fontes do Concílio e, ainda mais, sua teologia se mostra autêntica e segura, isto é, confiável.
[3] RATZINGER, Joseph, Introdução ao Espírito da Liturgia. São Paulo: Paulinas, IV Ed. 2011, pp. 136 – 143.
[4] Ibid. p 137.
[5] Ibidem.
[6]  Em grego προσκυνειν
[7] Cf. Opus Cit. p. 141.
[9] Grifo nosso.
[10] A propósito, a origem da palavra heresia (do latim haerĕsis, por sua vez do grego αἵρεσις, “escolha” ou “opção”, remonta a ideia de assumir somente uma parte e não o todo.
[11] Cf. Ap 5, 6 – isto é, morto e ressuscitado. 
[12] A propósito do Livro Apocalipse de São João, a palavra proskynein aparece 24 vezes.
[13] O autor diz “Diante de tudo isso, vale a pena perguntar: Qual o sentido do ajoelhar-se na celebração Eucarística para mim?”. Ora, não se pode particularizar uma matéria universal e, uma vez que a liturgia não é “minha” (aliás, atestam-no os documentos magisteriais), não se entende, no contexto do debate a expressão “para mim”, redundando em absurdo.
[14] Cânon XX
[15] IGMR 20. Grifo nosso.
[16] Ibid. 21
[17] Skopeuo, literalmente significa “objetivo”, “pretender”, “ter em vista”. O radical está presente em palavras como telescópio que remontam a ideia de ver, enxergar.

4 comentários:

  1. Boa noite Pe. Fabiano,

    Muito esclarecedor este artigo. E quanto ao sentar-se logo após receber a eucaristia? Tenho notado que há um bom tempo muitas pessoas recebem Jesus e sentam-se ao invés de ajoelharem-se. Ademais, observo que as músicas não cessam onde seria o tempo da ação de graças após a comunhão, pois muitas vezes parece que as músicas são usadas como muletas, ou seja, ao invés de ficar frente a frente com o Cristo, fica-se cantando, o que, na minha opinião não substitui a ação de graças. Nada como "Alma de Cristo, santificai-me..."
    Peço sua benção,
    Fabiana Leite
    biasleite@yahoo.com.br

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  2. Estimada Fabiana Leite ,

    Podemos considerar o seguinte:

    A Exortação Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis, falando sobre a distribuição e recepção da Eucaristia orienta que: “Quanto às prescrições para a correcta prática do mesmo, vejam-se os documentos recentemente emanados; todas as comunidades cristãs se atenham fielmente às normas vigentes, vendo nelas a expressão da fé e do amor que todos devemos ter por este sublime sacramento. Além disso, não seja transcurado o tempo precioso de acção de graças depois da comunhão: além da entoação dum cântico oportuno, pode ser muito útil também permanecer recolhidos em silêncio”. (Sacramentum Caritatis, n. 50 in http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/apost_exhortations/documents/hf_ben-xvi_exh_20070222_sacramentum-caritatis_po.html#A_estrutura_da_celebração_eucarística_).

    A citação deste número da Sacramentum Caritatis remete para a Instrução Redemptionis Sacramentum da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, que não menciona esse detalhe, mas podemos ver que a Instrução Geral Sobre o Missal Romano diz:

    a). Quando orienta sobre a estrutura, elementos e partes da missa, no que tange o Rito da Comunhão, no número 56, item “J” diz: “... terminada a distribuição da comunhão, se for oportuno, o sacerdote e os fiéis oram por algum tempo em silêncio, podendo a assembleia entoar ainda um hino, salmo ou outro canto de louvor”.

    b). Sobre “As diversas formas de celebração da Missa”, quando toca a forma típica, no n.121, o missal manda que “Feitas as purificações, o sacerdote pode voltar à cadeira. Pode-se guardar durante algum tempo um sagrado silêncio ou entoar um canto de louvor ou um salmo.

    Deste modo podemos entender que não é errado cantar depois da comunhão, mas o acento de precedência recai sobre o silêncio. Penso que uma coisa não exclui a outra. Quanto a ajoelhar-se depois da comunhão, não há menção alguma. O que se pode ver é que o sacerdote pode sentar-se depois da purificação, mas sobre os demais fiéis, não há orientação ficando em aberto.

    Espero ter respondido sua pergunta.

    Em Cristo,

    Pe. Fabiano de Carvalho

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  3. Pe. Fabiano,
    Realmente são dúvidas que eu tinha e que eu agradeço por respondê-las!
    Quanto aos fiéis talvez o meu estranhamento seja pela alteração de um costume, ou seja, era unânime o ajoelhar-se após acomunhão. Para mim este ato representa piedade e profundo reconhecimento de nossa pequenez diante do Pão da Vida, mas noto uma mudança que talvez seja fruto de uma mentalidade que entende a Missa mais como reunião fraterna e festa (por causa do Banquete Eucarístico) do que como sacrifício(adoração, ação de graças,expiação e súplica). Sei que a Missa tem também o caráter festivo, mas o é justamente pela salvação que o Senhor trouxe para nós pela sua paixão, morte e ressureição, mistério redentor que se torna presente na Santa Missa.
    Guardo na minha mente e coração uma resposta dada por São Pio de Pietrelcina que quando perguntado como se deveria assistir à Santa Missa, respondeu: "Como assistiu a SS Virgem e as piedosas mulheres. Como assistiu S João Evangelista ao sacrifício eucarístico e ao sacrifício cruento da cruz" (Não sei se ele se referia à Anáfora somente ou a toda a Missa)
    Talvez seja uma questão de espiritualidade. Uns preferem festa, palmas,coreografia com os braços, música alta onde outros preferem musicas mais suaves, recolhimento e silêncio na Santa Missa e este é o meu caso.

    Peço sua benção,
    Fabiana Leite

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  4. Fabiana sinto o mesmo que você diante do assunto, vejo com tristeza um costume acabar, e me impressiona muito como vi outro dia na paróquia que frequento que devemos sentar em "atitude" de adoração, até fiquei sem entender atitude é um ato, ato de adoração sentar-se?
    Se é assim, daqui a pouco com a entrada do celebrande os fiéis vão poder ficar sentados em "atitude" de respeito!!
    Bem se não fala nada na liturgia que deixem em aberto, mas não queiram acabar com um gesto tão belo.

    Paulo

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