Deparo-me agora com um artigo[1]
publicado pelo Niterói Católico, órgão oficial de informação da Arquidiocese de
Niterói/RJ, que parece não corresponder exatamente àquilo que é a orientação da
Igreja.
Sob o título “Ajoelhar-se ou ficar de pé? Eis
a questão”, encontra-se uma enxurrada de informações que carece de algum
aprofundamento e, não menos de fundamentação. Para nos colocar à par do
conteúdo do texto, passamos a um rápido resumo:
O centro do debate é a posição da assembleia
durante a Anáfora: se deve permanecer de pé ou ajoelhada, como é costume em
nossas celebrações. Necessitamos de clareza inicial sobre o status quo do debate que o autor deseja
trazer à peito. Analisemos:
“O
ajoelhar-se durante a prece Eucarística, é um dos temas que tem gerado muitas
discussões. Pode-se dizer que isso é reflexo de mais de mil anos de uma fé
devocionista que nos distanciou da prática ritual-celebrativa da Igreja
primitiva. E Hoje após quase cinquenta anos do Concílio Ecumênico Vaticano II,
que propôs a volta às fontes, colhemos os resquícios desse período”.
Podemos perguntar o que é reflexo de mais de
mil anos de uma fé devocionista: as muitas discussões ou o ajoelhar-se durante
a prece eucarística? Se o problema é o desenvolvimento do debate litúrgico,
devemos tomar um viés para análise do tema, mas se é o gesto de ajoelhar-se, em
si, cabe outro tipo de reflexão. Vamos tentar responder a ambos os pontos.
Um renomado teólogo, ao nos introduzir no
espírito da liturgia, dedica sete páginas de sua obra somente sobre esse
assunto. É claro que facilmente poder-se-ia refutar o argumento com base no
fato de o autor não ser latino-americano e, por isso, não entender a “inculturação”
da liturgia no Brasil. Contudo, não obstante à nacionalidade germânica, não
devemos deixar de estar atentos à palavra de Joseph Ratzinger[2] em
seu livro “Introdução ao espírito da liturgia” [3].
Analisando a “história do gesto de ajoelhar”,
passa em revista a recusa dos Romanos e Gregos, sob o argumento de que
“ajoelhar-se não seria digno do homem livre nem condiria com a cultura grega,
sendo assunto de bárbaros” [4] e dá
voz à negativa de Agostinho de ajoelhar-se diante de falsos deuses.
Explica o autor: “Olhando a história podemos
constatar que tanto os Gregos como os Romanos rejeitavam a posição de joelhos.
Perante os deuses parciais e desunidos... tal comportamento tinha plena
justificação: para estes povos, era por demais evidente que esses deuses não eram
Deus, mesmo dependendo do seu poder caprichoso e tendo sido obrigados a
assegurar-se, quando possível de sua benevolência (...) Agostinho dá-lhe [à
Aristóteles], de certo modo, razão: as divindades falsas seriam apenas máscaras
de demônios, que sujeitam o Homem à adoração do dinheiro e ao egocentrismo,
tornando-o deste modo, servil e supersticioso” [5].
Remarca ainda que o gesto de ajoelhar-se se
origina na própria Sagrada Escritura, já que a palavra proskynein[6]
aparece 59 só no Novo Testamento. Ajoelhar-se, segundo Ratzinger, tem para o
Antigo Testamento, o sentido de rebaixar as forças diante de Deus como forma de
reconhecimento de seu poder que origina tudo o que temos[7],
uma forma clara de adoração.
Nos Atos dos Apóstolos, falam-se da oração de
São Pedro (9,40), de São Paulo (20,36) e de toda a comunidade Cristã (21,5) em
posição de joelhos.
Fica provado assim que o argumento de que os
primeiros cristãos partiam o pão, nas casas (domus ecclesia), celebravam nas catacumbas, se reuniam ao redor da
mesa e que, por não haver bancos ou genuflexórios nestes lugares, todos ficavam
de pé, ao redor do centro, do altar, resulta em inválido, por não corresponder
aos referentes bíblicos.
Se o argumento fosse válido, a fortiori
ratione, deveríamos ter que retirar o altar, os bancos, o sacrário, os
retábulos, o ambão e outras coisas... E para reduzir ao absurdo, creio que se
devemos propor uma volta naqueles termos, por que não usarmos o mesmo estilo de
roupas que os primeiros cristãos?
Se a palavra do teólogo Joseph Ratzinger não
nos servir de posição abalizada, ao menos nos sirvam as palavras da Exortação
Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis[8] de
Sua Santidade Bento XVI. O documento agora mencionado trata, no número 65 da
reverência à Eucaristia e assim se expressa:
“Penso,
em geral, na importância dos gestos e posições, como, por exemplo, ajoelhar-se
durante os momentos salientes da Oração Eucarística. Embora
adaptando-se à legítima variedade de sinais que tem lugar no contexto das
diferentes culturas, cada um viva e exprima a consciência de encontrar-se, em
cada celebração, diante da majestade infinita de Deus, que chega até nós
humildemente nos sinais sacramentais.”[9]
Quais mais palavras deveriam ser ditas para
indicar a importância do ajoelhar na Consagração durante a Oração Eucarística.
Se houve algum questionamento no pensamento do autor do artigo quanto a melhor atitude
de exprimir o que celebramos, os documentos recentes da Igreja o dirimem logo
nas primeiras olhadelas.
Outra tensão que não ficou bem clara naquele
artigo foi a que existe entre “o Banquete” e “o Sacrifício”. Não raro, esse
tema causa alguma dificuldade. Devemos lembrar que a palavra “Católica”
significa universal e açambarca o sentido de totalidade de modo que não se pode
partir de uma escolha entre uma das partes, mas do todo[10].
Se de um lado é verdade que o banquete da
alegria é um aspecto da missa, também é verdade que o sacrifício também o é.
Isso nos faz compreender o Apocalipse de São João que nos mostra a liturgia
celeste onde, no altar do sacrifício está o Cordeiro imolado e de pé[11]!
Entre lágrimas copiosas por não haver quem abrisse o livro da história, João é
chamado a alegrar-se porque vencera o Leão de Judá que poderá abrir o livro.
Essa mística penitencial e festiva é expressa
no próprio andamento das partes da missa que, no ato penitencial nos convida a
reclusão e no Glória nos convida à alegria. Respeitar esses momentos é
imprescindível para uma celebração frutuosa da liturgia [12].
Parte desta tensão é também a realidade
mística da missa que transcende o tempo. No entanto isso não significaria dizer
exatamente que estamos no céu. É óbvio que não estamos no céu, por que se assim
fosse não o deixaríamos mais. Vale a pena lembrar a expressão advinda da
escatologia que remarca aquela tensão de que faláramos: “já, mas ainda não”.
Diante de tudo isso, vale a pena perguntar:
Qual o sentido do ajoelhar-se na celebração Eucarística[13]?
É duplo o significado. Em primeiro lugar o de
súplica, pequenez. O homem reconhece sua condição criatural e a condição Divina
de Deus. Ajoelha-se diante de Deus como um pequenino que d’Ele tudo deseja e
espera receber. Ao mesmo tempo, de adoração por que aquele Deus de quem ele
recebe tudo, é também o Deus sumamente bom que “trabalha” muito mais pela salvação
do homem que o próprio homem.
Existem algumas coisas que merecem relevo:
1) Dentre os
cânones do Concílio de Nicéia[14]
(325), é bem verdade, há a recomendação de que, nos dias do Senhor em
Pentecostes, todos devem rezar de pé e não ajoelhados. Mas daí a dizer que há
uma proibição, não se sustenta. As pessoas não ajoelhavam no domingo por uma
questão penitencial (no domingo não se fazia penitência), mas, no segundo
milênio a Igreja trouxe de volta o aspecto de adoração e reverência diante da
majestade divina que, como vimos, já era usual no ambiente neo-testamentário.
2) Nós não podemos
escolher a postura que devemos tomar na liturgia sob pena de um relativismo
litúrgico. As prescrições litúrgicas da Instrução Geral ao Missal Romano dizem:
“A posição comum do corpo, que todos
os participantes devem observar é sinal da comunidade e da unidade da
assembleia, pois exprime e estimula os sentimentos e pensamentos dos
participantes” [15]
3) As
dimensões da teologia do múnus sacerdotal,
que entre o padre e os demais fiéis é complementar, mas distinto, fica
evidenciado uma vez que, na Oração Eucarística, o padre está exercendo seu
múnus sacerdotal ministerial enquanto os demais fiéis o fazem mediatizados pelo
padre.
4) A mesma
Instrução Geral diz: “Ajoelhem-se durante a Consagração, a não ser que a falta
de espaço, ou o grande número de presentes ou outras causas razoáveis não o
permitam”[16],
não deixando margem nenhuma para uma escolha por parte do fiel (usa o verbo
“ajoelhar” no imperativo) e coloca como exceção bem definida o fato de não se
ajoelhar.
5) O fato de
não haver uma codificação da genuflexão nas normativas antigas não significa,
nós bem o sabemos, que não era prática entre os cristãos. A guisa de exemplo,
podemos ver muitas situações em que o uso precedeu à normativa (a Assunção de
Maria é um bom exemplo).
Uma ultima palavra:
Nossa
intenção, ao responder aquele artigo publicado no Órgão oficial da Arquidiocese
de Niterói é simples e reside em dois motivos:
A palavra
grega σκοπεύω[17],
de onde vem a palavra “Epíscopo”, significa “ver”. Daí ser um dos ofícios do
padre, como colaborador do Bispo, ajuda-lo a ver aquilo que pode levar à
comunidade ao erro.
Depois,
uma grande parte de nossos leigos tem acesso ao Niterói Católico e, por ser um
órgão oficial, deve ser sempre teologicamente revisado e não pode conter, de
modo algum, quaisquer imprecisões que causem confusão às pessoas que são
sinceras, mas desavisadamente leem os artigos lá constantes.
Ainda é
necessário ressaltar que devemos sempre zelar pela reta doutrina e disciplina e
que reflexões que sejam dissonantes do que nos ensinam os livros litúrgicos e
os documentos magisteriais devem ser evitados, como nós mesmos afirmamos quando
fazemos nossa profissão de fé, que por ocasião da Sagrada Ordenação, que no ato
da posse canônica.
Visamos
esclarecer as imprecisões relativas ao gesto reverente de genufletir bem como o
debate sobre seu uso. Percorremos a sadia teologia de Ratzinger e o magistério
da Igreja, principalmente as expressões da Instrução Geral ao Missal Romano, e
a tradição para chegarmos a conclusão de que é legitimo e obrigatório
ajoelhar-se durante a Anáfora não só por respeito às rubricas contidas nos
livros litúrgicos, mas, sobretudo, por reverente reconhecimento de nossa
pequenez e adoração diante de Deus.
[1] Fróes, Pe. Marcelo. “Ajoelhar-se ou ficar de Pé? Eis,
a questão!” in Niterói Católico, outubro de 2011. Ano 48, n. 548, p. 9.
[2] A respeito do autor, podemos dizer que embora a obra
que se citará não seja um documento pontifício e não tenha força da autoridade
magisterial, podemos afirmar com certeza que, por sua própria personalidade,
Joseph Ratzinger constitui uma voz extremamente abalizada por ter sido perito
do Concílio Vaticano II, de modo que seu pensamento, de certo modo, é uma voz
que ressoa das fontes do Concílio e, ainda mais, sua teologia se mostra
autêntica e segura, isto é, confiável.
[3] RATZINGER, Joseph, Introdução ao Espírito da Liturgia.
São Paulo: Paulinas, IV Ed. 2011, pp. 136 – 143.
[4] Ibid. p 137.
[5] Ibidem.
[6] Em grego
προσκυνειν
[7] Cf. Opus Cit. p. 141.
[9] Grifo nosso.
[10] A propósito, a origem da palavra heresia (do latim
haerĕsis, por sua vez do grego αἵρεσις, “escolha” ou “opção”, remonta a ideia
de assumir somente uma parte e não o todo.
[11] Cf. Ap 5, 6 – isto é, morto e ressuscitado.
[12] A propósito do Livro Apocalipse de São João, a palavra
proskynein aparece 24 vezes.
[13] O autor diz “Diante de tudo isso, vale a pena perguntar:
Qual o sentido do ajoelhar-se na celebração Eucarística para mim?”. Ora, não se
pode particularizar uma matéria universal e, uma vez que a liturgia não é
“minha” (aliás, atestam-no os documentos magisteriais), não se entende, no
contexto do debate a expressão “para mim”, redundando em absurdo.
[15] IGMR 20. Grifo nosso.
[16] Ibid. 21
[17] Skopeuo, literalmente significa “objetivo”,
“pretender”, “ter em vista”. O radical está presente em palavras como telescópio que remontam a ideia de ver,
enxergar.