As cinzas da humildade redentora
Nesta noite, ao serem impostas as cinzas da penitência sobre nossas
cabeças, nos recordaremos, às palavras do ministro, que somos pó e ao pó
retornaremos. A expressão é retirada do livro de Gn 3,9 e evoca o ambiente do
castigo depois do pecado “Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que
voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e pó te hás de tornar.” (Gn
3,19). As palavras das consequências do pecado de nossos primeiros pais ainda
ressoam doloridas nos nossos corações após cada pecado que cometemos como se
fossem um tenebroso tema musical que acompanha a cena de nossa história
pessoal. Entretanto, do mesmo castigo nasce a redenção.
A expressão usada em Gn para dizer pó
da terra é ’Adamah (hm'd'a). Sua sonoridade nos faz lembrar imediatamente a
palavra Adam (~d'a') e nos remete àquela
proximidade que temos com a terra de que fomos feitos: “Então Iahweh Deus modelou
o homem com o pó do solo, insuflou em suas narinas um sopro de vida e o homem
se tornou um ser vivente” (Gn 2,7). Aparece no texto de Gn o ciclo de vida e
morte que toca a todo ser humano: do pó nasce e ao pó retorna. Entretanto, algo
no ser humano é diferente, ele recebe um sopro de vida que o faz vivente.
O ser humano é um mistério, um sinal de Deus que carrega em si dois
extremos, a fragilidade do pó da terra e as alturas do sopro celeste. De certo
modo, está relacionado à terra e deve cuidar dela, como deve cuidar de si mesmo
e, por extensão dos seus semelhantes e por outro lado almeja o espiritual, o
celeste, e deve busca-lo como concretização de seus maiores desejos e de si mesmo,
como único modo de sua própria realização.
Se o tenebroso tema do pecado rasga a alma e tira da vida a suave canção da
felicidade, Deus não quis nos deixar condenados às consequências lancinantes da
morte, mas deseja, a cada dia – estejamos onde estivermos – trazer-nos de volta
a experiência de amor consigo. Por isso enviou ao mundo o seu maior dom de
Amor, Jesus.
É no Verbo que se fez carne e habitou entre nós (cf. Jo 1, 14) que
encontramos o caminho de volta para Deus. Não o caminho de volta para o paraíso
edênico, mas um caminho de volta para o Amor do Pai que se manifestou no seu Filho
e nos toca por meio do Espírito, o caminho para a intimidade com Deus, para uma
vida espiritual no Novo Adão (cf. 1Cor 15,45).
O caminho que Cristo nos deixou fica mais claro e evidente quando vivemos
bem a Quaresma e a Semana Santa como verdadeiros peregrinos de volta para o
Amor: “Sendo ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com
Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e
assemelhando-se aos homens. E, sendo exteriormente reconhecido como homem,
humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Por
isso Deus o exaltou soberanamente e lhe outorgou o nome que está acima de todos
os nomes, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho no céu, na terra e nos
infernos. E toda língua confesse, para a glória de Deus Pai, que Jesus Cristo é
Senhor.” (Fl 2, 6-11).
Portanto, o caminho de Cristo é o da humildade, reconhecendo nossa condição
de pó. Mas não um reconhecimento revoltado, rebelde como o daqueles que não
suportam a si mesmos. Essa rebeldia é obra do velho pecado que nos fez egoístas
e soberbos. Ao contrário, o caminho encontra-se em reconhecer que em nossa
humilde posição está a condição para nossa salvação. Se Cristo não se apegou ao
seu ser, por que nós nos apegaríamos ao nosso não ser?
Deus ensinou à Doutora da Igreja, Santa Catarina de Sena, que a humildade é
o solo fértil em que as raízes de nossas vidas se lançarão com profundidade no
autoconhecimento que nos levará a contemplar a maravilha do que Deus é em nós.
É exatamente por aí que São Paulo nos guia ao dizer que quando somos fracos é
que se manifesta a fortaleza de Cristo em nós. (Cf. 2 Cor 12, 10): “o que é
fraco no mundo, Deus o escolheu para confundir os fortes;” (1Cor 1,27)
“Mas qual é a estrada? [disse Deus à Santa Catarina] Vou dizê-lo. Toda
perfeição e virtude procede da caridade; a caridade alimenta-se da humildade; a
humildade nasce do auto- conhecimento e da vitória sobre o egoísmo da
sensualidade. Para se atingir o amor filial é necessário, pois perseverar na
cela do autoconhecimento. Nesta cela o homem conhecerá o Meu perdão através do
Sangue de Cristo, atrairá sobre si pelo amor, a Minha caridade, procurará destruir
em si toda má vontade espiritual e temporal...”.
Testemunho disso nos deu o Papa Bento XVI, ao resignar o trono de Pedro: “Converter-se
significa não fechar-se na busca do próprio sucesso, do próprio prestígio, da
sua própria posição, mas fazer, verdadeiramente, que cada dia, nas pequenas
coisas, a verdade, a fé em Deus e o amor se tornem as coisas mais importantes”.
Em outras palavras enclausurar-se no próprio egoísmo seria fruto do orgulho que
levaria de novo o ser humano para longe de Deus, para o pecado.
Abrir mão dos próprios orgulhos e deixar-se nas mãos de Deus é um ponto
árduo para o ser humano que está envolvido pelo pecado, mas é exatamente as
cinzas que receberemos e que nos lembrarão que somos pó que nos farão encontrar
a vontade de Deus e, nela, o Amor que nos dá alegria.
Assim, tornam-se gestos sinceros de quem deseja, pela humildade, chegar ao
Amor: a esmola (o desapego do dinheiro, do poder), a oração (desapego de si
mesmo, de suas próprias forças) e o jejum (desapego dos próprios desejos e
instintos).
O ser humano do paraíso está contente por que ao mesmo tempo em que cuida
da terra, cuidando de si, passeia de mãos dadas com Deus. O ser humano do
pecado está entristecido pelo egoísmo que traz em sim, mas o ser humano da Igreja,
que superou o pecado pela humildade, que encontrou nas suas cinzas o motivo de
sua salvação, é Feliz por que não só esta de mãos dadas com Deus, mas participa
do Amor da Trindade e leva esse mesmo amor a toda a Terra!
Do pó viemos e ao pó retornaremos, mas é do pó da humildade que nós
ressuscitaremos! É esse o renascer do ser humano pelo caminho de Cristo, o da
humildade que nos ensina saber quem somos e o que Cristo é em nós.
Pe. Fabiano de Carvalho Silva
Pároco
Nossa Senhora da Conceição – Boa Esperança