INTRODUÇÃO
Duas encíclicas que distam uma da outra oitenta e seis anos, com estilo literário e contexto histórico diverso e com motivos diferentes. Uma, A Pascendi Dominici Gregis, de oito de setembro de 1907, quinto ano do Pontificado de São Pio X e a outra, Veritatis Splendor, de seis de agosto de 1993, décimo quinto ano do Pontificado de Papa João Paulo II são aparentemente tão diferentes entre si. Contudo, trazem um pano de fundo bastante comum e revelam a continuidade do Magistério Petrino, exercido pelo Romano Pontífice, infalível em questões de moral e fé e perene, atravessando o tempo e acertando o passo com a eternidade.
Perceber nestes documentos que os tempos mudam, mas a problemática moral e religiosa do modernismo, embora com roupagens diversas e apresentação não menos mutáveis, são as mesmas é uma tarefa não muito difícil. Responder, no hoje da história aos problemas dos modernistas, que fundam suas teorias num agnosticismo imanentista que alcançam de um modo ou de outro – quer pelo panteísmo quer pelo subjetivismo – uma proposta ateísta que rechaça a Igreja e a religião é um ponto delicado que ambas encíclicas buscam elucidar partindo da verdade absorvida pela consciência do homem.
Mostraremos neste trabalho a continuidade do pensamento da Igreja nas duas encíclicas; como por trás do agnosticismo e imanetismo denunciados pela Pascendi está uma aspiração por uma liberdade desvinculada de uma natureza humana e como por trás das teses condenadas pela Veritatis Splendor estão o agnosticismo e o imanetismo descrito pela Pascendi.
I - A CONTINUIDADE DO PENSAMENTO DA IGREJA NAS DUAS ENCÍCLICAS.
O magistério da Igreja Católica é o corpo de mestres autorizados a ensinar e avaliar os pontos de doutrina, uma instancia habilitada a pronunciar-se em matéria de fé e de moral a ela confiada pelo próprio Cristo. Assim, a Igreja tem o dever de expor a doutrina revelada, já que é sua guardiã e dispensadora. O Magistério não acrescenta novidades, antes elucida e reafirma a doutrina católica e tem como o infalível doutor o Papa.
Se expressa a unidade desse magistério, que é perene, mesmo que os tempos sejam outros e mesmo que as necessidades sejam outras. O magistério é fiel à doutrina revelada pelo Cristo e a si mesmo não se contradizendo. Assim ocorre com as encíclicas Pascendi Dominici Gregis e Veritatis Splendor, o problema comum das duas encíclicas é a doutrina modernista, que trazem em seu epicentro questões imanentitas e agnósticas. Mas de que se trata?
1.1. Imanentismo
O imanentismo nega qualquer realidade ou ser fora da consciência ou da autoconsciência. Na leitura modernista, tal era o fundamento do método da imanência: encontrar Deus e o sobrenatural na consciência do homem. Assim, a fé não surge se não dos sentimentos e necessidades religiosas do homem.
1.2. Agnosticismo
No sentido literal designa a tese sobre a qual Deus é incognoscível, o que se traduz, pois, pela suspensão de todo juízo sobre a sua existência, aparentando-se, por isso, com o ceticismo. Não é uma negação dogmática da existência de Deus, mas a simples recusa de pronunciar-se sobre ele. Situar Deus acima da ordem do cognoscível pode ser uma maneira de reconhecer sua eminência, mas ao dizer que Deus é inexistente para o pensamento, também pode ser recusar-lhe toda e qualquer existência.
1.3. O modernismo
O Modernismo foi uma tentativa de reforma católica que teve alguma difusão na Itália e na França no ultimo decênio do século XIX e no primeiro de nosso século e foi condenada na encíclica Pascendi por Pio X. Recebe a inspiração das exigências da Filosofia da Ação[1] e consiste em extrair desta filosofia o significado que deve ser dado aos conceitos fundamentais da religião. Na Itália, assumiu especialmente a forma da crítica bíblica e política.
Podemos resumir da seguinte forma:
a). Deus se revela imediatamente à consciência do homem. Este princípio diminui ou anula a distancia entre o domínio da natureza e o da graça e também entre o homem e Deus, fazendo de Deus o princípio metafísico da consciência humana.
b). Deus é antes de tudo um princípio de ação e a experiência religiosa é prática, fazendo coincidir a religião com a moral.
c). Os dogmas nada mais são que expressões simbólicas e imperfeitas, porque relativa às condições históricas do tempo em que se constituem, da verdadeira revelação que é a que Deus faz de si próprio à consciência do homem.
d). À bíblia devem ser aplicados sem limitação os instrumentos de investigação de que dispõe a pesquisa filológica, isto significa dizer que deve ser estuda como um documento histórico da humanidade.
e). O Cristianismo, no campo da política, deve conduzir à defesa do progresso e ascensão do povo, cuja vida na história é a manifestação própria da vida divina.
Faz-se mister entender que Pio X na Pascendi tem a intenção de “primeiro [exibir]... as mesmas doutrinas em um só quadro, e mostrar-lhes o nexo com que formam entre si um só corpo, para depois [indagar] as causas dos erros e [prescrever] os remédios para debelar-lhes os efeitos perniciosos” [2]. Faz uma esmerada análise do movimento modernista, eivado de sentido agnóstico e imanentista, condenando-o.
A Veritatis Splendor, embora não tenha diretamente como objetivo responder ao problema do modernismo, uma vez que já está distante de seu epicentro, resgata o problema debelando os erros. Isso fica expresso em parágrafos como:
“Na sua raiz, está a influência, mais ou menos velada de correntes de pensamento que acabam por desarraigar a liberdade humana da sua relação essencial e constitutiva com a verdade. Rejeita-se, assim, a doutrina tradicional sobre a lei natural, sobre a universalidade e a permanente validade dos seus preceitos; consideram-se simplesmente inaceitáveis alguns ensinamentos morais da Igreja; pensa-se que o próprio Magistério possa intervir em matéria moral, somente para “exortar as consciências” e “propor os valores”, nos quais depois cada um inspirará, de forma autônoma, as decisões e as escolhas da vida.”[3]
Os documentos encaram a mesma realidade de subjetivismo que o imanentismo e o agnosticismo, presentes no modernismo, pulverizam na doutrina cristã. O Papa Pio X realça no pensamento modernista o seguinte sobre a verdade e a mutabilidade dos cânones religiosos:
Não é, portanto de nenhum modo lícito afirmar que elas [as fórmulas religiosas] exprimem uma verdade absoluta; portanto, como símbolos, são meras imagens de verdade, e, portanto devem adaptar-se ao sentimento religioso, enquanto este se refere ao homem; como instrumentos, são veículos de verdade e assim, por sua vez, devem adaptar-se ao homem, enquanto se refere ao sentimento religioso[4].
Podemos ler na Veritatis Splendor:
“Generalizada se encontra também a opinião que põe em dúvida o nexo intrínseco e indivisível que une entre si a fé e a moral, como se a pertença à Igreja e a sua unidade interna se devessem decidir unicamente em relação à fé, ao passo que se poderia tolerar no âmbito moral um pluralismo de opiniões e de comportamentos, deixados ao juízo da consciência subjetiva individual ou à diversidade dos contextos sociais e culturais.”[5]
Os problemas denunciados pela Pascendi estão no fundo das questões criticadas pelo Papa João Paulo II. Temas como o subjetivismo, a negação da lei natural, a incognoscibilidade de Deus, a redução da religião ao sentimento religioso, redução dos dogmas da Igreja e das normas morais à meras fórmulas religiosas inadequadas, a modificação e “evolução” da doutrina de acordo com o contexto histórico em que se encontram e etc., apresentados na Pascendi são retomados na Veritatis Splendor.
II - AS ASPIRAÇÕES POR UMA LIBERDADE DESVINCULADA DE UMA NATUREZA HUMANA NO IMANENTÍSMO E AGNOSTICISMO DENUNCIADOS PELA PASCENDI.
Já em 1907 verificava-se que entre as causas do modernismo, poderiam ser encontrados, entre as causas remotas do modernismo o amor de novidades e o orgulho expressos por uma vontade de liberdade que, opondo a liberdade do homem à lei natural acabam por deturpara a liberdade.
O modernismo coloca em rota de colisão a liberdade e a lei, contudo, não são idéias que colidem, mas se completam. Se por um lado os modernistas, sob o pretexto de libertar a consciência humana, acabam por restringi-la a mera consideração dos fenômenos, sem transpor os limites a que é chamada a transpor, por outro lado inculca uma falsa idéia de liberdade dizendo que a religião deve mudar de foco de acordo com o tempo.
No modernismo, o homem produz Deus no seu interior, por uma necessidade de divindade por ele sentida que é produzida no âmbito do incognoscível. Diante deste incognoscível, dentro ou fora do homem, a necessidade de um quê divino que une o homem a Deus.
Ora, deste ponto de vista, a vontade de uma liberdade desconexa de qualquer parâmetro externo acaba por desembocar num fideísmo onde o homem gera os próprios parâmetros da consciência e segue-as como norma. O modelo moral move-se do reconhecer a verdade intrínseca às coisas para a verdade produzida pela consciência do homem.
A perspectiva do modernismo denunciado pela Pascendi Dominici Gregis leva necessariamente ao subjetivismo religioso, denotando assim o intuito de impostar uma liberdade desvinculada da natureza humana:
“Efetivamente, o orgulho fá-los confiar tanto em si que se julgam e dão a si mesmos como regra dos outros. Por orgulho loucamente se gloriam de ser os únicos que possuem o saber, e dizem desvanecidos e inchados: Nós cá não somos como os outros homens. E, de fato, para o não serem, abraçam e devaneiam toda a sorte de novidades, até das mais absurdas. Por orgulho repelem toda a sujeição, e afirmam que a autoridade deve aliar-se com a liberdade.”[6]
O AGNOSTICISMO E O IMANETISMO DESCRITO PELA PASCENDI NAS TESES CONDENADAS PELA VERITATIS SPLENDOR.
A Carta de Pio X denuncia o modernismo pela explicação minuciosa de seus enunciados e proposições. Tais podem ser encontrados em refutações e condenações na Veritatis Splendor.
Carta de João Paulo II defende a luz de Deus, objetiva e autentica no interior do homem e “nenhuma sombra de erro e de pecado pode eliminar totalmente”, pois “nas profundezas de seu coração permanece sempre a nostalgia da verdade absoluta e a sede de chegar à plenitude do seu conhecimento” contrariando as teses modernistas que foram expostas na Pascendi.
A relação intrínseca entre a verdade e liberdade humana é a firmada e com ela a doutrina clássica sobre a lei natural, sobre a universalidade e permanente validade dos preceitos expostos pelo magistério para exortar às consciências e propor valores.
Posto que a perfeição exija a maturidade do dom de si, a que é chamada liberdade do homem, a carta põe em relevo:
“A palavra de Jesus revela a dinâmica particular do crescimento da liberdade em direção à sua maturidade e, ao mesmo tempo, comprova a relação fundamental da liberdade com a lei divina. A liberdade do homem e a lei de Deus não se opõem, pelo contrário, reclamam-se mutuamente. O discípulo de Cristo sabe que a sua é uma vocação para a liberdade. “Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade” (Gl 5, 13), proclama com alegria e orgulho o apóstolo Paulo. Mas logo precisa: “Não tomeis, porém, a liberdade como pretexto para servir a carne. Pelo contrário, fazei-vos servos uns dos outros pela caridade”.[7]
Vemos assim, que no fundo da carta de João Paulo II figura a problemática do modernismo, condenada com muitos argumentos que alcançam um cunho cientifico sem, contudo, desprezar a fé e sem deixar de considerar a transcendência acessível ao homem, a ela destinado, cujo acesso único é o Cristo.
CONCLUSÃO
Vemos assim que o modernismo esta o pano de fundo da Veritatis Splendor, assim como a questão da liberdade humana em relação a lei natural esta na perspectiva da Pascendi ao denunciar o modernismo. Denota-se assim o quanto as questões postas levam aos mesmos sistemas que reduzem o homem, a fé e a religião sob um pretexto de liberdade.
É pertinente a colocação de Jean Guiton e, com ela encerramos nossa reflexão que mostrou, nas duas cartas, a continuidade do magistério e as idéias subjacentes que se ligam umas as outras. Diz ele:
“O modernismo nos aparece como um caso particular num sistema mais amplo, como uma forma de pensamento que retornará sempre, ao longo da história do catolicismo, quando o espírito quiser fundar a fé sobre o espírito do tempo em vez de integrar o espírito do tempo à sua fé”. [8]
BIBLIOGRAFIA
I. FONTES
PIO PP X. Carta Encíclica Pacendi Dominicis Gregis. São Paulo, Paulus. 2002.
JOÃO PAULO PP. II, Carta Encíclica Veritatis Splendor. São Paulo, Paulinas. 1993.
II. OBRAS
COMPAGNONI, Francesco (dir). Dicionário de Teologia Moral, São Paulo, Paulus,1997.
LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário Crítico de Teologia, São Paulo, Paulinas e Loyola, 2004.
[1] Caracterizada pela crença de que a Ação constitua o caminho mais direto para conhecer o Absoluto ou o modo mais seguro de possuí-lo. O primado da Razão Prática de que Kant falará não tinha significado fora do domínio moral; Mas com Fichte esse primado significa que só na ação o homem se identifica com o Eu infinito. Na forma religiosa a ação é o núcleo essencial do homem e só a análise da ação pode mostrar as necessidades e as deficiências do homem, além de sua aspiração ao infinito: que por sua vez pode vir satisfeita somente pela ação gratuita e misericordiosa de Deus.
[2] PIO PP X. Carta Encíclica Pacendi Dominicis Gregis. São Paulo, Paulus. 2002, n. 7.
[3] JOÃO PAULO PP. II, Carta Encíclica Veritatis Splendor. São Paulo, Paulinas. 1993, n. 4.
[4] PIO PP X. Carta Encíclica Pacendi Dominicis Gregis. São Paulo, Paulus. 2002, n. 33.
[5] JOÃO PAULO PP. II, Carta Encíclica Veritatis Splendor. São Paulo, Paulinas. 1993, n. 4.
[6]PIO PP X. Carta Encíclica Pacendi Dominicis Gregis. São Paulo, Paulus. 2002.
[7]JOÃO PAULO PP. II, Carta Encíclica Veritatis Splendor. São Paulo, Paulinas. 1993, n. 17.
[8] GUITON, Jean. La penseé de M. Loisy, p. 20 in LACOSTE, Jean-Yves Dicionário Critico de Teologia. São Paulo, Paulinas: Loyola, 2004 in verbete modernismo.